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Antonio Carlos Zuffo

Professor da Área de Hidrologia e Gestão de Recursos Hídricos da Unicamp

Op-CP-39

O efeito José

Nos últimos meses, a região Sudeste do Brasil tem vivenciado uma redução das chuvas que compromete o abastecimento de água de inúmeras cidades, mas, principalmente, dos grandes centros urbanos. A falta de chuvas atingiu o estado de São Paulo de uma maneira mais contundente, antes mesmo de os estados de Minas Gerais, Rio de Janeiro e Espírito Santo estamparem as manchetes nacionais.

Também verificamos o esvaziamento dos grandes reservatórios de regularização das usinas hidroelétricas da região, causando incertezas quanto ao fornecimento de energia para os próximos seis meses secos, a se iniciar em abril. Também observamos, sem compreender muito bem, como pode haver enchentes urbanas e, ao mesmo tempo, estarmos com nossas torneiras secas, justamente pela falta de chuvas. Isso é muito difícil de compreender.

Em estudos de níveis de água do rio Nilo, foi observado um comportamento cíclico (ou quase cíclico) nos regimes das vazões, o qual está relacionado com o comportamento das chuvas na África Subsaariana, local onde nasce o rio Nilo. Verificou-se um comportamento de períodos mais ou menos longos em que as vazões possuem uma média mais alta, seguida por outro período, também mais ou menos longo, com média menor, e assim sucessivamente.

A esse fenômeno foi dado o nome de efeito José, em alusão a José do Egito, personagem bíblico que interpretou o sonho do Faraó a respeito dos sete anos de abundância seguidos de sete anos de seca e fome, conhecidos como o período das vacas gordas e vacas magras. Porém esse fenômeno é pouco ou quase nada conhecido no País, justamente porque esses ciclos completos ocorrem em um período de 67 a 100 anos, e nossas séries históricas possuem, quando muito, 40 a 50 anos.

Dessa forma, nessas séries históricas, observavam-se tendências ou ascensionais ou descensionais. Quando isso ocorre, geralmente, utilizamos ferramentas estatísticas para retirar dessas séries hidrológicas suas tendências, calculando, depois, suas estatísticas – geralmente, a média e o desvio padrão –, as quais adotamos como invariáveis para o dimensionamento de estruturas hidráulicas, como reservatórios ou sistemas de drenagem em geral ou ainda para a operação dos sistemas de reservatórios para a geração de energia elétrica.

Não consideramos que a média e o desvio padrão dessas amostras variem com o tempo, pois não consideramos esse efeito – o mencionado efeito José. No Brasil, apesar da existência de diferentes artigos científicos evidenciando que as vazões dos rios brasileiros das regiões Sudeste e Centro-Oeste aumentaram em média 30% a partir da segunda metade da década de 1970, nenhum estudo previu que essa média que um dia subiu também diminuiria.

Dessa forma, nós podemos estar caminhando, novamente, para um período longo de umas três ou quatro décadas em que haverá uma redução das precipitações nessas duas regiões, mas haverá um aumento das precipitações nas regiões Sul e Norte do Brasil. Essa variação de chuvas, de períodos mais ou menos longos, é natural e tem sua origem nas variações na emissão de energia de nossa estrela, o Sol. Mas essa variação de longo período ainda não explica o porquê de nossas enchentes urbanas.

O processo hidrológico é um pouco mais complicado nas cidades. Com a ocupação das áreas urbanas, há, gradativamente, um adensamento urbano com a redução, cada vez maior, das áreas verdes. A vegetação impede o aumento elevado de temperatura, pois promove a perda de calor pela transpiração das plantas, que funcionam como reguladores de temperatura.

Na mancha urbana impermeabilizada, essa regulação de temperatura não ocorre. O concreto, o asfalto, as lajes e os telhados absorvem mais energia e emitem mais calor, ocasionando a formação das também conhecidas “ilhas de calor”, responsáveis pelas “chuvas de verão”. O calor emitido pela superfície impermeável irá aquecer o ar, que irá se expandir e diminuir sua densidade, o que provocará sua ascensão rápida e provocará chuvas de curta duração, pequena área e abrangência – em torno de 20 a 25 km2 –, e que terá grande intensidade.

Assim, esse tipo de chuva causa transtornos urbanos com o alagamento de algumas ruas, interrompendo o tráfego de veículos e atrapalhando o retorno das pessoas do trabalho para casa, justamente porque elas ocorrem no final da tarde. Dessa forma, a aglomeração de construções tem a capacidade de alterar o microclima local com o aumento da frequência da ocorrência das chuvas convectivas.

A outra justificativa está novamente relacionada com essa variação cíclica, pelo “efeito José”. Muitas das equações de chuvas utilizadas em projetos de drenagem urbana foram determinadas entre as décadas de 1970 e 1980. Então, as séries utilizadas para a definição dessas equações obtiveram as chuvas do período mais seco, que ocorreu entre meados da década de 1930 a meados da década de 1970.

Para diminuir ainda mais a representatividade dessas equações de chuvas, as cidades cresceram muito entre as décadas de 1970 e 2000, aumentando ainda mais as chuvas convectivas nas cidades. Assim sendo, toda a infraestrutura urbana de drenagem foi dimensionada com equações defasadas no tempo, que descreviam as chuvas observadas em uma condição climática e de ocupação não mais verificadas atualmente. As obras de drenagem já nasciam insuficientes, ou melhor, subdimensionadas.

O que se espera para os próximos anos seria uma diminuição dos totais anuais de chuvas, com o aumento de dias com registro de precipitações e com a respectiva diminuição das alturas precipitadas diárias, isso na zona rural mais verde e de menor temperatura. Nas cidades, devem ocorrer também menos chuvas, prenunciadas pelo efeito José; porém, com o aumento da impermeabilização, devemos esperar uma multiplicação das chuvas convectivas.

Para minimizar esse efeito convectivo, as cidades teriam que adotar soluções que minimizassem esse efeito de aquecimento urbano, com aumento das áreas verdes. A cidade de São Paulo e Campinas, e acredito que muitas outras no Brasil, fizeram justamente o oposto. Muitas das praças nos centros das cidades foram totalmente impermeabilizadas e transformadas em terminais de ônibus. As cidades perderam suas praças, o solo impermeabilizado, hoje, produz maior escoamento superficial, impactando ainda mais o combalido sistema de drenagem urbana.

Temos que repensar nosso modelo de ocupação do espaço físico de nossas cidades. Telhados verdes, pavimentos permeáveis, arborização, uso da água de chuva, tratamento de efluentes deverão estar necessariamente incluídos em quaisquer agendas no futuro para nossas cidades. Então, nossas cidades estarão preparadas para mais um ciclo de algumas décadas com aumento das precipitações, se considerarmos o efeito José – vacas gordas –, a partir da década de 2040. Temos uma janela de oportunidade para mudar o futuro, uma vez que, no passado, não dispúnhamos de muita informação. Informação é oportunidade para errarmos menos. Pensemos nisso.