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Marcelo Morgado e Dante Ragazzi Pauli

Conselheiro e Presidente da ABES-SP, respectivamente

Op-CP-39

Água: elemento de disputa no século XXI

A ONU alertou ao longo de 2014, através da Unesco e do Banco Mundial, para que a água será a causa potencial de guerras em meados deste século, face à combinação perigosa entre oferta ameaçada por mudanças climáticas, desertificação, desmatamento e poluição por esgoto, lixo e efluentes industriais e a demanda crescente pela superpopulação, conurbação e hábitos de consumo mais exigentes, que geram consumo indireto crescente pelas pegadas hídricas associadas aos bens e serviços mais hidrointensivos.

Como a afluência à classe média têm crescido, o consumo de carne bovina na China aumentou. Ocorre que se tem 16 m3 de água por kg versus 6 m3 para a carne suína e 3 m3 para o frango, ao longo de toda cadeia de suprimentos. Para dar conta da maior demanda por ração na China, o Brasil, que já é o 4º maior exportador mundial de água virtual (112 km3/ano), vende mais soja que carrega água embutida.

Por outro lado, a água é uma externalidade ambiental não contabilizada na estrutura de custos e, a despeito de a agricultura ser o seu maior usuário, com cerca de 70% do consumo no Brasil e no mundo, mesmo a taxa irrisória de cobrança pela água instituída pela lei nº 9433/97 (Política Nacional de Recursos Hídricos) ainda não é paga pelo setor.

Assim, a água, um recurso natural essencial à vida, uma dádiva concedida ao Planeta pelo bombardeio de cometas por bilhões de anos e que propiciou o surgimento da vida nos mares há 3,5 bilhões de anos, está se tornando o motivador de hostilidades entre nações, de guerras civis entre povos e conflitos entre bacias hidrográficas. No passado, os rios eram meras fronteiras naturais, por servirem de obstáculos para a movimentação de tropas, e daí as pontes serem estratégicas.

Hoje, os rios são alvo de disputas, pois as captações em excesso à montante fazem escassear a água para as populações ribeirinhas à jusante. Há fartos exemplos, e o caso mais emblemático é o do Mar de Aral, no Kazaquistão, que encolheu em 90% pela decisão equivocada da URSS de expandir a irrigação a partir dos seus dois tributários, visando ao cultivo de algodão. Outro efeito colateral foi a salinização do solo pela intensa evaporação e a contaminação das águas com agrotóxicos, que liquidaram com a pesca.

Da mesma forma, um aproveitamento hidrelétrico de porte pode inviabilizar a construção de barragens rio abaixo, que, ademais, dependeriam de vazões de deflúvio controladas por outros países. Isso num cenário bem ao contrário do que as represas em série no rio Grande e no Paraná proporcionaram ao Brasil, em termos de segurança, pela operação conjugada, ou seja, com estocagem compartilhada e podendo se otimizar a geração total, favorecendo as mais eficientes, que contam com maiores desníveis.

Também no capítulo rios, assistimos à polêmica entre estados do Nordeste pela transposição do rio São Francisco, desviando para os três eixos previstos 3,5% da vazão média disponível de 1.850 m³/s. Contudo, mesmo sem o projeto estar pronto, já é cada vez mais baixo o caudal na foz entre Alagoas e Sergipe. A própria água pode ser a arma de guerra, como os aliados usaram ao romper barragem no Ruhr, na Segunda Guerra Mundial.

Um caso recente em que se alardeou ser a represa uma bomba de água foi Itaipu, então a maior do mundo. Alegou-se, na época de seu erguimento, que a decisão de se ter uma barragem única tão gigantesca, a ponto de ter alagado o parque nacional de Sete Quedas, seria torná-la uma ameaça de inundação de território argentino, quando pairava esse atrito regional despropositado em nosso continente.

Enfim, o conflito que advém dos tempos bíblicos, quando israelitas e filisteus pelejavam por poços no deserto, se sofisticou muito, dados os usos múltiplos da água e sua essencialidade para movimentar toda a economia moderna. E é justamente no Oriente Médio, região de permanente déficit hídrico, que países se conflagram pela água, que serve de pano de fundo para hostilidades.

As Colinas de Golan são essenciais para Israelenses e sírios, pois abastecem o Mar da Galileia, principal reserva de água doce da região. O rio Jordão já tem a vazão consumida em 90%. Os palestinos sofrem com restrições no abastecimento e recebem 1/6 do consumo israelense. Em outras partes do mundo, também há atritos. Os direitos sobre a pesca, irrigação e outros usos são o novo campo de batalha.

Aqui, no Brasil, a despeito de termos 12% dos recursos hídricos do planeta (1º lugar), convivemos com a disparidade de termos o Sudeste com 6% da disponibilidade e 42% da população, e o Norte, com 68% da água e 7% dos habitantes. O contraste é ainda mais forte quando nos atemos ao fato de que, pelo mecanismo dos “rios voadores”, a Amazônia, por evapotranspiração, transfere para o Centro-Sul a umidade equivalente à metade do caudal na foz do rio Amazonas.

No plano mundial, tem-se o mesmo contraponto. A América do Sul e Central detêm 31% da água e 6% das pessoas, contra a Ásia com, respectivamente, 27% e 59%. Isso dá uma medida potencial de um cenário futuro de crise. O agravamento do aquecimento global comprometerá a estabilidade do regime pluvial. Padecemos disso no Centro-Sul com os dois piores verões da série histórica de 125 anos. A crise no sistema Cantareira deixa à mostra o conflito.

Acirram-se divergências por outorgas entre as bacias do Alto Tietê e PCJ, ambas afetadas pela estiagem. Já a proposta de transposição de 5 m³/s da  bacia do Paraíba do Sul, entre represas Jaguari e Atibainha, provocou atrito entre SP e RJ, e os ânimos se exaltaram durante a campanha eleitoral. Outra briga é entre uso hidrelétrico e abastecimento, já que 70% da matriz é hidráulica.

O segundo é prioritário por lei, mas a Aneel e a ONS fizeram pressão, em 2014, em favor de se manter deflúvio na represa do Jaguari, atendendo à geração na UHE do Funil. Mesmo o lançamento de efluentes, criando prejuízos para a captação, foi tema de atrito recente entre Uruguai e Argentina, devido à construção de indústria de celulose lançando no rio Uruguai. O próprio eucalipto sofreu intensa vilanização no universo popular como cultivo que sugaria toda a água do solo.

Apesar de ser um cultivo muito hidrointensivo, isso foi, em parte, relativizado por estudos científicos, e seu papel como poupador de mata nativa na produção de carvão e ocupando áreas degradadas e de relevo acidentado não pode ser desprezado. De fato, o setor florestal está, hoje, crescentemente recompondo nascentes, matas ciliares e adotando práticas que previnem a erosão.

Iniciativas como o corte por talhões, plantio em curvas de nível, barragens de sedimentos e mudas mais resistentes ao estresse hídrico se disseminaram. No ambiente fabril, a indústria de processo proporciona oportunidades que vêm sendo exploradas. Aproveitar energia entre correntes do processo via mais trocadores de calor, aproveitar condensados e maior reúso para águas de lavagem são exemplos dignos de nota, mostrando ser possível a evolução de segmentos econômicos rumo ao desenvolvimento sustentável.

Isso superando, no caso, um triste passado, em que o próprio governo estimulava o abate de floresta nativa para plantio de eucaliptais. Porém cabe ainda avançar bem mais no reúso de efluentes de estações de tratamento de esgoto, tipo lagoas na fertirrigação de eucaliptais, na utilização de lodo de tratamento de esgoto e outras fontes para composto fertilizante (há estudo da Esalq com resultados muito promissores), na maior preservação de nascentes e áreas de recarga em topos de morro e, finalmente, no maior desenvolvimento de carpintaria e marcenaria utilizando madeira de eucalipto.

A ABES – Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental, entende que a superação de conflitos para tamanha fonte geradora de disputas envolve consenso e colaboração entre todos os entes, sem bairrismos, passando acima de dissensões políticas e não implica, obrigatoriamente, “mais do mesmo”. Ou seja, sempre seguir recalcando água de cada vez mais longe e de cotas mais baixas, com maior gasto de energia no bombeamento.

É imperioso investir mais em quatro frentes: promover mais uso racional da água (85% do consumo na RMSP é residencial), combater intensamente as perdas, reúso a partir do esgoto, efluentes e chuva e recomposição da mata ciliar, proteção das nascentes e reflorestamento, aumentando a reposição dos aquíferos. Tais linhas de trabalho exigem quase sempre obras de menor porte e ações localizadas, combinadas com muita perseverança e continuidade, precisando ser abraçadas por sucessivos governos. Além disso, abatem custos ao invés de aumentar gastos, como ao obter mais água de mais longe.

Nisso, é preciso quebrar paradigmas. Por outro lado, a ABES acredita firmemente na trilha da gestão consorciada dos recursos hídricos com municípios da mesma bacia hidrográfica atuando juntos e compartilhando mananciais, investimentos e instalações. O modelo de gerenciamento tripartite, envolvendo governo/usuários/sociedade em CBHs, precisa ser aprofundado, pois permite o intercâmbio de iniciativas, conjugar recursos e viabilizar ações prioritárias, em especial a fundamental, que é perseguir a universalização da coleta e tratamento de esgotos.

Infelizmente, durante a atual crise hídrica, a atuação dos CBHs tem sido relativamente tímida e longe de um papel esperado de protagonismo. Assim, a ABES, mais antiga entidade do saneamento, congregando profissionais, empresas e Academia, busca contribuir para o Brasil, para que o país mais rico em água, também seja o que oferecerá bons exemplos de inovação, boa governança e administração eficiente de suas águas, e que a única disputa seja a saudável, pelos melhores índices de desempenho.