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Jayme Buarque de Hollanda

Diretor Geral do INEE

Op-CP-12

Uma política para o uso energético da madeira

Segundo os historiadores, o processo civilizatório começou na Era do Fogo, quando o homem aprendeu a usar a madeira como fonte de energia. Quando aprendeu a fabricar o carvão vegetal - CV, um subproduto energético da madeira, pôde evoluir da Era da Pedra Lascada para a Era do Bronze. Pela facilidade como pode ser obtida, a madeira é, em grande parte, destinada ao uso doméstico e rural, na sua maioria, de forma não comercial.

Nas economias avançadas, esta fonte pode atender a até 5% das necessidades de energia; a dependência elevada desta é, normalmente, associada a subdesenvolvimento. No Brasil, porém, vivemos uma situação muito especial, pois a maior parte da energia da madeira é usada pela indústria para produzir calor pela queima direta (indústrias cerâmicas, papel, gesso), ou para converter carvão vegetal, usado como fonte de energia e redutor na produção de ferro-gusa.

Nestas funções, ele substitui fontes fósseis, notadamente o carvão mineral, o óleo combustível e o gás natural, usados em outros países para a mesma finalidade. Segundo o Balanço Energético Nacional, a “lenha” forneceu 14% da energia primária do Brasil, uma participação quase igual à da cana-de-açúcar e das hidrelétricas. Desse total, 10% de toda a energia usada no país é utilizada industrialmente.  

O uso energético da madeira no Brasil justapõe experiências exemplares, como a exploração cíclica de florestas particulares, permitindo a regeneração das áreas plantadas, e desastrosas, como a extração predatória da madeira nativa e o emprego de técnicas primitivas de termoconversão, que, via de regra, atuam na ilegalidade.  

A aquecida demanda por ferro-gusa, nos últimos quinze anos, aumentou de forma acentuada a demanda pelo carvão vegetal, contribuindo para acelerar a devastação na Amazônia, de extensas áreas de cerrado e, mais recentemente, com a instalação de guseiras no Mato Grosso, do bioma do Pantanal. O carvoeiro “limpa” a terra para atividades agropastoris que, em áreas onde o solo é pobre, em pouco tempo dão início a um processo de savanização.

A extração de madeira no cerrado já causou a “morte” de alguns rios e está assoreando o São Francisco. Na caatinga, a retirada de madeira para uso pela indústria gesseira é uma das causas da desertificação no Vale do Gurguéia. A energia produzida de forma predatória aumenta as distâncias de transporte, pressionando os ganhos dos carvoeiros, que reduzem os custos na mão-de-obra que trabalha na floresta, elo final e mais fraco da cadeia.

Em pleno século XXI, a indústria de gusa assinou uma carta-compromisso de não mais comprar o CV de produtores que utilizam mão-de-obra escrava. Esta é uma dimensão do processo de desmatamento, geralmente desconhecida dos brasileiros. O mesmo vale para o Estado, que não possui marcos regulatórios ou políticas públicas que orientem a utilização dessa fonte de energia.  

A dependência da lenha nativa ilegal tem dias contados, seja pelas pressões ambientais, seja pelas distâncias crescentes. Embora possível em alguns casos, é pouco provável que a substituição do carvão vegetal por fontes fósseis tenha viabilidade em longo prazo. A sobrevivência econômica deste setor está, portanto, condicionada ao aumento da oferta de biomassa plantada e sustentável e da produtividade na cadeia de produção, permitindo o uso da lenha em bases aceitáveis.

Tem sido um erro tratar o tema apenas pelo aspecto ambiental, ignorando sua dimensão econômico-energética. A política ambiental não se mostrou capaz de deter a destruição. Além de combater a lenha ilegal, o Brasil precisa montar uma agenda positiva, que valorize as conquistas que já fez, que organize e aperfeiçoe as cadeias de uso energético da lenha, indo da produção da madeira até o produto final, mediante seu uso energético otimizado, garantindo a sustentabilidade desta fonte.

Para tanto, é muito importante que o país tenha uma política energética para a madeira, a única fonte de energia importante do país, para a qual não existe uma política definida. Tudo isto é potencializado em um cenário único: somos, hoje, um dos poucos países a dispor de cobertura florestal nativa extensa, que precisa ser preservada. Possuímos um ativo energético e um potencial gerador de energia renovável extraordinários, principalmente por conta dos fatores climáticos.  

O Brasil tem insolação elevada, produtividade florestal alta e base industrial que depende do carvão vegetal para produzir um gusa de alta qualidade. Reunindo, portanto, as condições necessárias para dar um novo impulso ao uso dessa fonte renovável, com expectativa de custos decrescentes, na contramão dos combustíveis fósseis.

É preciso montar uma agenda positiva: que organize e aperfeiçoe as cadeias de uso energético da madeira, mediante uso otimizado com tecnologias mais eficientes; que garantam a sustentabilidade desta fonte entre a produção da biomassa e o uso final; que recupere, inclusive, os bio-óleos, um subproduto para uso energético e não energético, que pode ser recuperado no carvoejamento.

Para tanto, faz-se necessária a instituição de uma política energética para a madeira, que incentive todos os atores desse processo a buscarem soluções que permitam atingir esse objetivo. A falta de uma política nessa área traduz a perspectiva das economias desenvolvidas, localizadas em regiões com baixa isolação, onde a produtividade da biomassa é baixa e o custo dessa fonte é muito elevado.

Lá, evoluem as tecnologias para usar combustíveis fósseis, enquanto as voltadas para usos energéticos da biomassa estagnaram há mais de um século. Uma rara exceção ocorreu no setor de papel e celulose, pois usa resíduos florestais para gerar energia elétrica, com baixo custo de produção. Os potenciais teóricos de aperfeiçoamento são muito elevados, no entanto, enquanto avançaram a ciência e a engenharia, ao longo de mais de um século, o estudo dessa cadeia ficou, praticamente, abandonado.

Uma mobilização da comunidade científica e tecnológica brasileiras, orientada para aperfeiçoar esta cadeia, vai apresentar resultados muito rapidamente. A produção de álcool seria um paradigma. Antes do Proálcool muitas usinas usavam lenha nativa nas caldeiras por falta de tecnologia para usar o bagaço, que era queimado em piras. A política do álcool levou as usinas a aumentarem a eficiência na cadeia produtiva, tornando-o competitivo, suprindo suas próprias necessidades de energia. Além disso, começam a se tornar supridoras de energia elétrica para a rede pública.