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Maria Cecília Wey de Brito

Secretária-geral do WWF-Brasil

Op-CP-39

Água, floresta e respeito

Segunda-feira, 16 de março. Abro o jornal e leio, preocupada, mais uma manchete que conecta o Brasil à crise hídrica. Só que, dessa vez, o assunto remetia-se não à população urbana, dos grandes centros, açodada pela escassez de água e pelo excesso de justificativas não convincentes. Um documento produzido pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), revelado pelo jornal Folha de S. Paulo, escancarou mais uma janela para olharmos a dimensão multifacetada da crise brasileira. Fui checar na página da comissão.

Desde 2002, a CPT registra os conflitos por água nas áreas rurais do País. Em pouco mais de uma década, foram 127 conflitos, envolvendo 42,8 mil famílias que vivem distantes dos grandes centros. A partir de 2005, os conflitos aumentaram, mas o ápice foi mesmo em 2014, com um período de seca de dimensões inesperadas. Água é fogo! Nas cidades, a face social da crise hídrica não se mostrou apenas nas torneiras secas, que chegaram a ficar assim por mais de 12 horas seguidas no momento mais crítico, como se viu em São Paulo. 

Toda a economia se ressentiu com majoração no preço da energia elétrica, que aumentou o custo dos alimentos, que puxou a alta nos produtos industriais, que jogaram as taxas de desemprego para cima e fizeram as promessas eleitorais da última campanha caírem por terra. A falta de água para gerar as turbinas nas hidrelétricas fez o governo optar pelas térmicas, muito mais caras e assustadoramente poluidoras. Indústrias começaram a migrar dos estados onde a crise se mostrou mais grave, novos retirantes se tornaram. Estados peso-pesados do PIB se engalfinharam numa peleja para defender aquilo que consideram como “seus” mananciais.

Vidas secas: A despeito da seca, cujas causas têm fortes raízes no desmatamento, que interfere no regime de chuvas e seca, os rios voadores, o Brasil maneja mal o recurso de que se ufana em possuir em quantidades de fazer inveja a qualquer nação. Nada menos de 12% de toda a água doce do mundo está sob a nossa responsabilidade.

Mas é o poder público quem deve dar as respostas, mais do que a sociedade, neste momento. Esta se mostra disposta a colaborar. Diante da crise, o povo economiza, cria alternativas, inventa engenhocas fabulosas. Com o governo é mais complicado, é tudo mais lento, denso, com fortes tendências de descolamento da sociedade. Em 1997, o governo promulgou a lei que cria a Política Nacional de Recursos Hídricos e o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos. Porém a gestão das águas no Brasil urge por novas formas de governança.

E isso implica um razoável aparato de Estado em forma de regulamentações, políticas e mecanismos de gestão e de implementação. Mas o mais importante talvez seja o diálogo e a participação da sociedade. Em um cenário de cumprimento do dever do Estado, deveríamos estar muito bem servidos pelos comitês de bacias, uma ideia arrojada da política hídrica, mas que dorme na letra inerte.

Os comitês, assim como o Sistema de Gerenciamento de Recursos Hídricos, precisam ser fortalecidos, estruturados e ter recursos financeiros. Se quisermos mesmo garantir água para o futuro, precisamos dos planos de bacias antes que os ecossistemas aquáticos entrem em colapso. E só haverá abundância de água se houver suficientes florestas.

E como vamos recuperar os séculos de destruição da vegetação nativa que levou quase 90% da Mata Atlântica, cerca da metade do Cerrado e um bocado bem expressivo da Amazônia? Como adensar o que restou de florestas para garantir que teremos chuva, nascentes e reservatórios cheios, recuperar o que está crítico e proteger a vegetação remanescente?

Uma chave: Temos, na implementação efetiva do Código Florestal, uma chave para resolver esse passivo da ordem de 21 milhões de hectares derrubados ilegalmente, que equivalem ao tamanho de quase todo o estado de São Paulo, e que precisarão, obrigatoriamente, ser restaurados nas diferentes regiões brasileiras. Mas é preciso implementar satisfatoriamente o Código Florestal e seus instrumentos, como o Cadastro Ambiental Rural (CAR), os Programas de Regularização Ambiental (PRA) e os incentivos econômicos para recuperação e manutenção de matas nativas.

O CAR dará a localização e a dimensão do passivo. Servirá para nortear a política de recuperação florestal.  O cadastro tem, por trás de si, um bem montado sistema, com imagens de satélite e bases de dados georreferenciados. O cadastramento das propriedades tem prazo legal. Já poderia estar mais adiantado, não fosse por setores do agronegócio que não querem arcar com os custos da recuperação ambiental nem deixar transparente sua situação – mesmo já tendo o descontaço da ampla anistia de desmatamentos pretéritos. Há quem aposte que o Código Florestal “não vai pegar”. Nós apostamos no contrário.

Mas, mesmo assim, o Código Florestal, sozinho, não garante a sustentabilidade da agricultura. É preciso ir além da lei. Hoje, o mercado está globalizado. E quem compra, por exemplo, carne ou grãos de áreas desmatadas, mesmo que de forma legal, corre sério risco de imagem, sobretudo se o seu consumidor descobre que o produto comprado agrega em si a destruição da maior biodiversidade do planeta.

E o nosso Código Florestal deixa aberto o flanco para que cerca de 88 milhões de hectares de vegetação nativa sejam ceifados com base na lei. Preocupados com sua imagem internacional, os grandes traders da soja brasileira participam, há sete anos, de uma moratória criada para controlar essa cultura no bioma amazônico. Tomamos parte na Mesa Redonda da Moratória da Soja e vemos, de perto, a dificuldade que é manter o pacto, que anda no fio da navalha.

Portanto adotar padrões mais ousados é o mínimo que se espera dos governos e do setor produtivo em relação ao desmatamento. Por exemplo, o Consumer Goods Forum – que agrega os maiores compradores de commodities agrícolas do mundo – assumiu que seus membros deverão zerar o desmatamento em suas cadeias produtivas até 2020. Em 2014, 28 governos, 35 grandes corporações, 16 grupos indígenas e 45 ONGs e grupos da sociedade civil assinaram a Declaração de Nova York, que prevê reduzir pela metade o desmatamento até 2020 e zerá-lo até 2030.

O Brasil ficou fora – justamente porque seu Código Florestal permite o “desmatamento legal”. Pode até ser legal, mas indefensável no momento em que cada pedaço de floresta em pé faz a diferença no presente e no futuro. Pelo aspecto que traz de positivo, o Código Florestal, implementado para valer, significa 21 milhões de hectares de vegetação nativa recuperada.

Mais árvores significa mais biodiversidade, menos gás estufa, retenção de água da chuva no solo, abundância hídrica na cidade e no campo, mais emprego e renda e mais saúde e conforto. É perfeitamente possível aumentar em até seis vezes a produção de soja na Amazônia sem derrubar uma árvore. Com poucos ajustes no manejo da pecuária, libera-se espaço suficiente para o crescimento planejado da agricultura até 2040, sem desmate. Bastar usar dos mecanismos que se têm à disposição, seja na lei, na tecnologia, no sistema financeiro e na inteligência científica disponível no Brasil. É de uma postura assim, decisiva e arejada, de que dependem nossas águas. Muito mais do que apelos a São Pedro.