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Roberto Isao Kishinami

Consultor especialista em Meio Ambiente

Op-CP-39

Vamos precisar de um balde maior

A atual crise de água e energia elétrica permite retirar algumas lições que, se quisermos um futuro melhor, terão de ser aprendidas rapidamente. Primeiro, temos de alcançar o século XXI no nosso relacionamento com os corpos d’água. A construção de longos aquedutos para captação e transporte de água, desde bacias distantes, assim como o uso de rios para afastamento dos esgotos, são técnicas desenvolvidas pelos romanos por volta de 300 a.C.

Continuar a usar as mesmas técnicas mais de dois mil anos depois, em megalópoles de 20 milhões de habitantes, convenhamos, é inaceitável. Um dos efeitos desse anacronismo é que, enquanto os reservatórios de abastecimento em São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte – só para citar as maiores – estão sendo usados em seus “volumes mortos”, reservatórios como a Billings – 500 bilhões de litros e dez vezes o Sistema Cantareira na configuração atual – não são aproveitados em sua plena capacidade porque acumulam décadas de esgoto de todas as origens e continuam a receber poluentes das suas margens e por seus afluentes, inclusive do Rio Pinheiros, no caso da Billings.

A primeira e mais urgente medida, portanto, é construir sistemas capazes de tratar os esgotos domésticos até o grau de potabilidade da água que contém. As normas atuais para os efluentes de estações de tratamento estabelecem padrões suficientes para seu lançamento em cursos d’água com algum grau de contaminação. Verdade que essa é a situação da quase totalidade dos cursos d’água próximos aos centros urbanos, mas dar continuidade ao que já existe só pode piorar o quadro atual.

O objetivo primário do tratamento do esgoto deve ser o de retornar água potável diretamente para o sistema de distribuição de água. Objetivo que, se perseguido desde hoje, poderá ser alcançado, com as tecnologias comercialmente disponíveis, em cinco a dez anos. Essa medida radical reduzirá a demanda de água de mananciais e contribuirá para a despoluição dos rios.

Se ela for somada a medidas de usos racionais – reduzindo perdas, coibindo desperdícios –, então teremos um efetivo aumento da resiliência das populações a variações climáticas imprevistas. A importância desse novo enfoque pode ser vista e mostrada por uma única estação de tratamento de esgoto na RM de São Paulo, a ETE Barueri, operada pela Sabesp. Nessa estação, entram, em média, cerca de 10 m3/s de esgoto, e saem cerca de 9 m3 de água com algum grau de contaminação, que são lançados ao Rio Tietê.

Do outro lado da mesma empresa, responsável pela captação de novos mananciais, encontra-se em preparação a construção do Sistema Produtor São Lourenço, para o aumento da oferta média em 4,7 m3/s, ao custo de investimento estimado em R$ 1,7 bilhão e que exigirá, entre outras medidas, o bombeamento desse volume por 320 m “morro acima”, pela diferença de cotas do ponto de captação e o ponto mais alto de entrega.

Essa nova fonte de água potável para a RM de São Paulo apenas supre uma demanda reprimida e não muda o cenário à frente que, no modelo atual, vai exigir mais transporte de grandes volumes de água desde regiões distantes. Dada a carência existente no setor de água potável canalizada e de tratamento de esgoto – o Sistema Nacional de Informações sobre saneamento registra inúmeras localidades em que o consumo per capita é menor que 150 l/dia/per capita, o mínimo recomendado pela Organização Mundial da Saúde, e apenas 35% do esgoto produzido é tratado no País –, é razoável supor que será necessário criar um fundo especial para que esse déficit de infraestrutura seja rapidamente sanado, alimentado por uma contribuição especial dos consumidores existentes e privilegiados, a exemplo do que ocorre na área energética com a Cide – Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico.

Uma segunda lição da crise é a necessidade urgente de proteger os mananciais e seus afluentes pela restauração florestal em suas margens. A complexa interação entre florestas e rios vai muito além das margens, e há um papel insubstituível das florestas na preservação e na integridade dos ciclos hidrológicos. Mas décadas de discussão e embates em torno do Código Florestal não produziram, até agora, passos significativos em direção à restauração florestal.

Milhões de hectares de Áreas de Preservação Permanente, País afora, continuam sob a ameaça de empreendimentos imobiliários, ocupações clandestinas, usos do solo mal planejados e simples descaso. Continuamos a extinguir biodiversidade e, no caso, capacidade de captação e armazenamento de água das chuvas em reservatórios e seus afluentes. E quanto aos recursos necessários para restaurar mata nativa? Sabemos que restaurar mata ciliar em suas funções pode custar até R$ 15.000,00 por hectare, dependendo da técnica necessária.

Ocorre que boa parte da restauração – principalmente a parcela mais barata –  poderia ser realizada com melhor gerenciamento dos recursos já previstos na legislação para os recursos hídricos. A Política Nacional de Recursos Hídricos já estabelece a cobrança pelo uso da água, estabelecendo os possíveis usos e que os comitês de bacia são os responsáveis pela cobrança e destinação da arrecadação.

Alguns projetos de pequena escala já ocorrem dessa forma, mas é preciso aumentar a escala dos projetos, bem como dos recursos arrecadados. Para isso, é preciso lembrar que 70% da captação é para uso agrícola, respondendo o abastecimento para centros urbanos por 10% a 20% do volume total captado. O restante é consumido pelas indústrias. Um sistema eficiente de cobrança diferencia os usos da água, de maneira que aqueles que preservam os recursos hídricos são premiados, frente aos que consomem e exportam água através dos produtos em que a água é um componente ou insumo.

As matas ciliares de todos os tipos, preexistentes ou restauradas, são candidatas naturais a esse prêmio. Mas mesmo as plantações de espécies exóticas podem desempenhar esse papel se forem planejadas adequadamente. Um exemplo são florestas plantadas em áreas contíguas às áreas protegidas, servindo de zona tampão para a flora e a fauna nativas.  Ao invés de contrapor a silvicultura às matas nativas, trata-se de associar as duas em duplo benefício.

Boas experiências – como a da cidade de Nova Iorque, que paga aos proprietários das terras onde estão os mananciais consumidos pela cidade para preservarem a vegetação nativa e o solo livre de contaminantes, ao lado da exploração comercial – reafirmam que o que é preservado é, também, usado. A relação de interdependência entre água e floresta vale também para os aquíferos, tanto superficiais quanto profundos.

Embora invisíveis ao olho humano, proteção e recarga de aquíferos dependem do papel de retenção e infiltração desempenhado pelas florestas. Além desses recursos, há outro, que poderia ser rapidamente usado, por já ser existente, não fosse a inoperância dos órgãos oficiais. Trata-se das multas ambientais, que, só no Ibama, somam mais de R$ 20 bilhões, dos quais esse órgão consegue cobrar meros 0,3%, segundo levantamento do Tribunal de Contas da União.

Usando a legislação já existente – Lei 9.605/1998 e suas regulamentações –, seria possível converter 60% desse valor em serviços de restauração florestal, uma vez que as maiores multas referem-se a desmatamento direto ou indireto. Finalmente, é preciso deixar claro que não há mais sentido prático em discutir se o fenômeno atual é ou não parte das mudanças climáticas previstas por modelos climáticos globais. Essa é uma questão acadêmica.

Para todos os efeitos, a crise atual é uma amostra do que há pela frente. Embora a redução nas precipitações anuais de partes na região Sudeste tenha sido pronunciada (“nunca antes na história desse país”), a realidade é que ainda se está longe do que os modelos climáticos permitem inferir. Nesse caminho, como lembrou a jornalista Eliane Blum, do El Pais, “vamos precisar de um balde maior”. Está passando o tempo de providenciar.