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Sérgio Ahrens

Pesquisador em Planejamento de Produção e Manejo Florestal da Embrapa Floresta

Op-CP-44

Sobre a natureza jurídica difusa das florestas e demais formas de vegetação
O art. 2º da Lei nº 12.651/2012, popularizada como Código Florestal ou Lei de Proteção da Vegetação Nativa, determina que "as florestas existentes no território nacional e as demais formas de vegetação nativa, reconhecidas de utilidade às terras que revestem, são bens de interesse comum a todos os habitantes do País, exercendo-se os direitos de propriedade com as limitações que a legislação em geral e especialmente esta Lei estabelecem." 
 
Registre-se que esse enunciado já havia sido adotado tanto em 1934 (quando se editou o Decreto 23.793, que aprovou um "primeiro" Código Florestal brasileiro) como em 1965 (quando a Lei 4.771 instituiu o que foi então denominado "novo" Código Florestal e que vigorou até 2012). Apesar da reforma do Código Florestal, profunda e paradigmática, realizada no período 1999-2012, o legislador optou por manter, no novo marco legal, aquela percepção de caráter coletivo consagrada pela sociedade há 78 anos.

Nesse particular, infere-se que tal entendimento indica que a Política Pública sobre essa matéria constitui verdadeira Política de Estado, pois transcende os governos. Por meio da construção jurídica no enunciado acima transcrito, o legislador de 2012 reafirmou, de forma inequívoca, que as florestas e as demais formas de vegetação natural dizem respeito não apenas à pessoa, física ou jurídica, proprietária de um fragmento do território nacional (tanto o imóvel rural como o terreno urbano), mas interessa também a toda a sociedade na medida em que existem diversas "partes interessadas" na matéria. 

 
A norma também informa que os direitos de propriedade (usar, fruir e dispor da coisa) serão exercidos com as limitações previstas em Lei. De outro lado, as florestas plantadas para fins comerciais e que resultam da ação humana são excepcionadas daquele tratamento, pois constituem um cultivo, foram equiparadas à agricultura, sendo nelas livre a extração de matérias-primas, a critério de seu proprietário. Verifica-se, ainda, no enunciado daquela norma, que as florestas e as demais formas de vegetação foram destacadas, ou separadas, da propriedade sobre a terra, apesar de que sobre ela existam e se desenvolvam. 
 
Na primeira metade do século XX assim também ocorreu, por exemplo, com o solo, as águas (de superfície ou subterrâneas), os minérios e a fauna. Por esse motivo, diz-se da obrigatoriedade de obtenção prévia de permissões, licenças e outorgas, junto à administração pública, sempre que se desejar fazer uso de um recurso sobre o qual toda a sociedade tenha um interesse coletivo legalmente estabelecido. 
 
De forma análoga, na exploração de florestas naturais, por meio da realização de cortes seletivos, requer-se, primeiro, a aprovação de um Plano de Manejo Florestal Sustentável – PMFS. Esse é também o fundamento para a instituição de um Cadastro Ambiental Rural – CAR e dos Programas de Regularização Ambiental dos estados e do Distrito Federal – PRAs, aos quais proprietários e possuidores de imóveis rurais devem aderir quando pertinente.
 
As florestas e as demais formas naturais de vegetação não são bens privados, nem bens públicos, e sim bens de interesse comum a todos os habitantes do País e, por esse motivo, de natureza jurídica difusa: a titularidade de tal interesse coletivo é indeterminada e indeterminável, pois alcança, por via reflexa, até mesmo as gerações sequer nascidas. Assim, infere-se que, de certa forma, os cidadãos não proprietários possuem contradireitos que se opõem aos direitos do proprietário e podem reivindicar ao Estado que suas percepções, de caráter coletivo, sejam consideradas nas decisões acerca do uso e da destinação das florestas e demais formas naturais de vegetação.
 
Inicialmente, a legislação florestal priorizou a proteção das florestas naturais, tendo em vista assegurar a continuidade do suprimento e a estabilidade dos mercados de lenha e de madeiras para diversos fins. Não se falava em meio ambiente. Também não se imaginava o extraordinário desenvolvimento da silvicultura, nem a notável expansão da área com florestas plantadas. Todavia, transcorridos pouco mais de 500 anos, à flora brasileira atribui-se outros valores que não somente a sua utilidade como fonte de matérias-primas.

Assim, a ciência contemporânea tem comprovado que as florestas e outras formas naturais de vegetação realiza funções ambientais relevantes, como sobre a regulação do clima e a conservação dos recursos hídricos, da diversidade biológica e de seus processos ecológicos, da paisagem natural, assim como incontáveis benefícios para a sadia qualidade de vida. 

 
A conservação de florestas e de outras formas naturais de vegetação também integra a sustentabilidade ambiental de atividades agrárias, tanto por condicionar o microclima e por viabilizar a presença de polinizadores, como por possibilitar o uso intensivo de recursos naturais, dentre os quais, o solo e a água. Na atualidade, o reconhecimento de algumas daquelas funções fundamenta o pagamento por serviços ambientais. Eventualmente, a ciência poderá identificar outros atributos ambientais da vegetação e que também sejam relevantes para todos os habitantes do País, inclusive, e especialmente, para o proprietário.