Trago uma perspectiva pautada apenas pela minha experiência de vida numa única escola, a Esalq-USP. Trata-se, portanto, de uma reflexão que, se estendida para outras escolas, pode não ser 100% válida. Pela “pegada” histórica da reflexão, entretanto, acho que tem algum potencial para servir de modelo e pode ser que inspire outras escolas e universidades.
Em 1895, sob o título "Appello ao Governo e ás Camaras – Destruição das Matta", na Revista Agrícola da Sociedade Pastoril e Agrícola da cidade de São Paulo, Luiz de Queiroz escreveu o artigo retratado no facsimile ao lado: Luiz de Queiroz começou a sua educação formal com 8 anos de idade, na França, o país mais inovador daquela época. Retornou ao Brasil com 24 anos.
Herdeiro de boa fortuna, encontrou em Piracicaba, no interior do estado de São Paulo, um ambiente propício para colocar em prática os dogmas básicos da educação iluminista que recebeu. Deve ter pensado: “A ciência e a tecnologia são o esteio do progresso, e o Brasil, rico em terras, recursos naturais e clima, precisa de uma escola que as coloque em prática”. E, assim, fez nascer a Esalq em 1901.
No artigo reproduzido, que escreveu aos 46 anos de idade, e na sua obstinada dedicação à criação de uma boa escola, Luiz de Queiroz revela grande sensibilidade ao equilibrar tecnologia e ciência. Vemos nele a clara percepção dos limites impostos pelo meio ambiente e a evidente certeza de que clima e florestas se conectam. Escrito há exatos 127 anos, é surpreendente a atualidade desse texto. Hoje, com muito mais evidências factuais e científicas, sabemos que florestas, clima e produtividade agrícola estão intrinsicamente conectados.
Esses sábios conselhos do final do século XIX ecoaram e viraram lei no primeiro Código Florestal Brasileiro. Promulgado em janeiro de 1934, pelo presidente Getúlio Vargas, o código surgiu para "regulamentar a exploração florestal, de forma a manter os benéficos efeitos da natureza ... suas influências na umidade, na temperatura, na proteção dos solos, rios etc., bem como impor sanções ao homem que ... transgredisse as normas ...". Os seus preceitos, entretanto, eram complexos e inexequíveis, como a da reposição no mesmo local com as mesmas espécies. Essa primeira tentativa de proteger as florestas como provedoras de serviços ecossistêmicos, portanto, acabou tornando-se “letra morta”.
Trinta anos depois, um novo consenso leva a uma reformulação do código florestal de 1934. A mudança começou bem longe da recém-criada Brasília, como conta Regina Leão, na página 234, do seu imperdível livro "A floresta e o homem".
Um ex-diretor da escola idealizada por Luiz de Queiroz, na época já cinquentenária, o então ministro da Agricultura do governo Castelo Branco, Prof. Hugo de Almeida Leme, costumava retornar nos fins de semana a Piracicaba para hospedar-se na "casa do diretor" e reunir-se com outros professores.
Numa dessas reuniões, reuniu-se com o Professor Helladio do Amaral Mello para discutir a necessidade de alterar o código florestal vigente, tornando-o mais exequível. Isso criaria condições para as empresas trabalharem dentro da lei. As conversas levaram ao decreto presidencial 4.771 de setembro de 1965, que revogou o código florestal de 1934.
A nova versão, atendendo às orientações da comissão integrada pelo Prof. Helladio, criou as Áreas de Proteção Permanente e as Reservas Legais e incluiu dispositivos que definiram com mais clareza as regras da reposição florestal obrigatória e a possibilidade, normatizada anos mais tarde, de as empresas privadas poderem investir parte do seu imposto devido em reflorestamento. Essas modificações acabaram levando às condições e aos incentivos que criaram a nossa competitiva indústria florestal atual.
Meio século depois, novas demandas forçaram novos ajustes. Dessa vez, as mudanças no Código Florestal visavam tornar o uso da propriedade agrícola para fins de produção mais compatível com o uso para fins de preservação ambiental. O novo Código Florestal, de abril de 2012 (Lei 12.651), e uma série de desdobramentos posteriores, contou novamente com uma forte participação da Academia, mas, dessa vez, o aporte foi mais difuso, e a busca por um difícil consenso teve que ser resolvido no Congresso, onde passou, mas com uma votação de apenas 274 votos a favor e 184 votos contra.
De fato, foram necessários mais sete anos para que, do ponto de vista legal, o "papel das florestas e a sua importância" fossem totalmente regulamentados. Somente em 2019, quando um acordão do STF derrubou todas as ações diretas de inconstitucionalidade e uma lei específica (a 13.887) definiu as datas máximas para a regularização ambiental das propriedades, é que passamos a sentir mínima segurança jurídica capaz de atribuir às florestas um claro papel na paisagem rural brasileira e de ver reconhecida a sua importância. Essa percepção da importância das florestas foi, aos poucos, forjando no Brasil uma paisagem na qual convivem a produção e as florestas, num mosaico rico e diverso.
Há uma outra questão, entretanto, que parece transitar por uma dimensão que vai além do científico e do legal. Quando plantadas para o abastecimento industrial, o papel como fonte de matéria-prima fica evidente, mas, quando mantidas e restauradas para prover serviços ecossistêmicos, a sua importância ainda não é perfeitamente tangível. Para atuar nessa dimensão, é que a educação e as universidades entram novamente em cena. No coletivo, as árvores são percebidas como elementos difusos e abundantes.
É o que acontece com o ar e a água, que, por serem abundantes, só percebemos a sua real importância quando faltam. No caso das florestas, entretanto, os danos ao nosso bem-estar e à nossa própria vida acontecem de forma mais sutil e com um certo atraso. A sua ausência só é percebida quando, asfixiados, famintos ou sedentos, nos damos conta de que eliminamos, deterioramos ou contaminamos, de forma irreversível, a própria fonte de ar, água e alimentos.
Plantar e cuidar de florestas é garantir a nossa própria vida e, para isso, devem se apresentar os cursos de engenharia florestal. Cabe, portanto, refletir se, no Brasil, estamos formando bons engenheiros florestais nas escolas que já temos. Bem, a resposta está na própria razão de existência dessas escolas, e será “sim” se essas escolas perceberem a sua nobre missão. Será “sim” se estiverem formando profissionais conscientes do seu papel como provedores de sistemas florestais sadios e permanentemente capazes de purificar o ar, circular a água e fornecer produtos essenciais para a nossa existência.
A visionária capacidade empreendedora de Luiz de Queiroz, que, além de exemplar como pioneiro no uso da tecnologia, nos deixou também a sensibilidade humanista de criar uma escola para formar bons profissionais, é um atributo que deveria ser obrigatório quando renovarmos os quadros das nossas universidades. Os professores de visão empreendedora estão mais habilitados para preparar bons e hábeis profissionais, capazes de garantir a continuidade do vital e intrincado papel das florestas nas nossas relações de produção e de desenvolvimento social.
Vivemos um novo momento em que profundas crises tornam as nossas escolhas muito difíceis. É nossa obrigação equilibrar o acesso universal à educação de qualidade, enquanto mantemos a estabilidade das instituições democráticas, garantimos as nossas liberdades, mitigamos os efeitos das mudanças climáticas, transitamos para uma economia descarbonificada de menor impacto sobre os nossos limitados recursos naturais e garantimos o direito à vida e à diversidade de todas as espécies da flora e da fauna. As universidades, se bem financiadas e providas de bons professores e competentes administradores, têm a obrigação de formar profissionais que entendam o essencial papel das florestas. Papel esse que, pela sua essencialidade, se mantém inalterado há mais de um século e que, em muitos casos, inspirou a fundação de ótimas escolas ... como o fez Luiz de Queiroz ao nos deixar o seu legado e o seu “desabafo” de 1895 na Revista Agrícola.