A pandemia da Covid-19 mudou a maneira de viver e atingiu a rotina de todos, sem exceção. Em qualquer segmento de atividade econômica, para pessoas de todas as condições sociais e idades, de todo o mundo, em diferentes níveis de impacto, o coronavírus decretou um alerta: o desenvolvimento sustentado em redes e arranjos institucionais colaborativos deve ser priorizado.
Essa é uma premissa e não um movimento passageiro. Na região da Costa do Descobrimento, no sul da Bahia, onde opera uma plataforma multi-institucional de apoio à agricultura familiar, baseada nos conceitos da agroecologia, são desenvolvidos projetos voltados à produção de alimentos, envolvendo centenas de famílias de pequenos agricultores, organizados em associações, que contam com instituições parceiras que incluem o poder público, empresas privadas, meio acadêmico e movimentos populares.
Essa rede colaborativa apoia iniciativas de geração de renda em comunidades rurais, indígenas e assentamentos de reforma agrária. Com a chegada da Covid-19 ao território e a necessidade de adoção de protocolos preventivos e protetivos, incluindo o isolamento social, essas comunidades, em especial, sofrem com a interrupção abrupta de renda e a exposição ao risco de contaminação com o coronavírus.
Apesar do significativo impacto que esse novo cenário trouxe para a qualidade de vida dessas comunidades, o olhar mais próximo (a essas comunidades) nos fez observar que parte delas se encontra em patamar de desenvolvimento de suas atividades produtivas, no qual já se percebe a presença de conceitos da sustentabilidade, que, durante a pandemia, têm sido fundamentais para transformar a agricultura familiar em aliado para a preservação da qualidade de vida, diminuindo a vulnerabilidade das famílias em relação à segurança alimentar e nutricional e à manutenção do isolamento social como forma de proteção à saúde.
Nesse contexto, conseguimos perceber como essas comunidades se diferenciam por estarem inseridas em iniciativas sustentáveis de desenvolvimento, articuladas em redes cooperativas que oferecem uma estrutura mais robusta, capaz de apoiar as pessoas, mesmo diante dos maiores riscos, como é o caso da Covid-19.
Nas comunidades que já alcançaram esse patamar de sustentabilidade, os impactos socioambientais sofridos com o efeito do novo coronavírus foram mitigados, pelo menos parcialmente, eliminando ou reduzindo sua vulnerabilidade, mantendo níveis de segurança alimentar que somente foram possíveis como resultado da agricultura familiar praticada por esses grupos, com base em conceitos de agroecologia, com mínima dependência de insumos químicos, de alto custo, com arranjos produtivos adequados à realidade e à vocação das famílias e à introdução de culturas agrícolas de diferentes ciclos, de curto, médio e longo prazos de cultivo.
Observamos também que a autossuficiência dessas comunidades na produção de uma cesta de alimentos com um mínimo de diversidade contribui significativamente para a redução de riscos e, consequentemente, menores danos à saúde de seus membros, pela possibilidade de menor exposição ao ambiente externo às suas próprias comunidades.
Parece evidente que os grupos que estão em situação de menor vulnerabilidade aos impactos da Covid-19 são os mais bem-sucedidos na atuação de fortalecimento de redes cooperativas, tendo como parceiros o poder público, empresas, universidades e instituições locais.
O apoio, direto ou indireto, de parceiros externos mostrou-se um fator indispensável, principalmente neste momento, para o desenvolvimento de estratégias e mecanismos de acesso contínuo a boas práticas, acesso a mercados para seus produtos, informação qualificada sobre prevenção, ampliando a segurança e as oportunidades de renda.
Essas comunidades conseguiram dar continuidade às suas atividades, mesmo que em menor escala, alcançando, neste momento difícil, o autossustento e evitando a desnutrição e outros danos à saúde, conseguindo, assim, uma menor exposição ao risco de contaminação à Covid-19.
Temos observado, na prática, o resultado de projetos de agricultura familiar equilibrados, com arranjos produtivos sustentáveis, com produção de alimentos diversificados, saudáveis e com mínima dependência de insumos químicos de alto custo. Esses fatores associados têm permitido que muitas comunidades consigam se manter em isolamento social, preservando seus grupos de risco, como os idosos e as gestantes, além de contribuírem para quebrar a lógica perversa de disseminação do coronavírus, visto que, sem a prática do isolamento social, estariam interagindo mais rotineiramente com outros grupos.
Isso permitiu que esses grupos sigam as orientações da Organização Mundial de Saúde (OMS), ao mesmo tempo que preservam minimamente sua rotina de produção. Podemos elencar ainda, pelo menos, quatro fatores que levaram essas comunidades e essas conquistas coletivas.
O primeiro está diretamente ligado à questão temporal: grupos que estão há mais tempo persistindo na implementação de projetos baseados em redes de cooperação e buscando a autossustentação mostram-se mais aptos a enfrentar os novos desafios. O segundo é a coesão social: comunidades que têm mais sentimento de pertencimento e união entre si destacam-se pelo protagonismo nas ações implementadas. A liderança é o terceiro ponto de destaque.
O líder é vital para que principalmente os objetivos de longo prazo sejam alcançados, que as atividades sejam conduzidas de maneira adequada, organizada e perene. É o grande responsável pelo engajamento dos demais membros da comunidade, na mediação de conflitos e no compartilhamento de visão de futuro. São os líderes que movem a comunidade para perseguir os objetivos coletivos com prazos e metas.
E, por fim, o último ponto, a questão espacial: comunidades mais isoladas têm desafios maiores na manutenção de seus arranjos produtivos e de interagir cooperativamente com outros grupos ou com centros urbanos. Se, por um lado, o distanciamento espacial pode trazer alguma segurança do ponto de vista do contágio do coronavírus, por outro, essas comunidades precisam promover, de modo ainda mais organizado, os laços de parceria com o território.
Todas essas questões impactam, diretamente, o enfrentamento da pandemia. Vimos que algumas das comunidades que atuam em redes e participam de arranjos institucionais necessitaram menos de apoio, seja do poder público ou de instituições privadas, para enfrentar a pandemia. Uma evidência disso está no fato de esses grupos não terem solicitado cestas básicas, por exemplo.
Em vez de alimentos prontos, pediram sementes, de modo que pudessem seguir com seus ciclos de plantio. Ou seja, necessitavam apenas de um apoio para seguir com sua dinâmica já alcançada, de produção econômica autossustentada. Essa experiência comprovou o sucesso da atuação solidária em rede.
A Costa do Descobrimento abriga excelente exemplo desse desenho de atuação em redes cooperativas por meios dos trabalhos desenvolvidos pelo Núcleo de Estudos em Agroecologia (NEA), da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), e da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, da Universidade de São Paulo (Esalq/USP), no Projeto Assentamentos Agroecológicos Sustentáveis, que assiste mais de 1.400 famílias de pequenos agricultores.
Os resultados alcançados estão contribuindo, neste momento, para a mitigação dos efeitos negativos da pandemia e do necessário isolamento social. Sendo assim, a atuação em rede comprovou seu valor, neste momento de crise, como fator essencial para o desenvolvimento sustentável.