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Augusto César da Silva Jucá

Ensaio

Op-CP-11

O futuro do presente

Foi total o desapontamento de meu filho de 11 anos, quando anunciei que teria pouco tempo para ele no fim de semana, pois teria que escrever este artigo. Visivelmente contrariado, ele disse que “se era para ter uma opinião sobre o que poderia acontecer com as florestas e o clima, que eu pegasse uma máquina do tempo e resolvesse o problema logo!” Na falta de idéia mais libertadora, peguei uma carona na tal máquina do tempo e fiz o melhor para dar uma espiadano futuro.

Desembarquei em 2090 e, por sorte, consegui por as mãos em um dos livros de uma tal de Raquel Leopoldina, uma historiadora ambiental. Antes que eu fosse sugado de volta para 2008, consegui ler uns poucos trechos, escritos em uma língua híbrida entre o inglês, o português e o espanhol... O que me ficou na memória depois da apressada leitura foi mais ou menos isso:

“...não era de se admirar que nos idos de 2010, muitos tivessem acreditado nos prognósticos de um esgotamento conturbado dos recursos naturais e que as trajetórias desastrosas dos séculos anteriores seriam novamente plausíveis. Em sua tese de doutorado sobre a história recente dos recursos naturais no Brasil, defendida em 2080, Raquel Leopoldina cunhou o termo a “expectativa dos comuns”, que basicamente identificava o conjunto de futuros tendenciais, nos quais a sociedade, no início do século, acreditava como sendo o mais plausível.

A tese, logo transformada em livro, com uma vendagem que surpreendeu Raquel e o editor, havia lhe rendido uma respeitável reputação de quase celebridade como historiadora econômico-ambiental. Em conseqüência, naquele ano de 2090, Raquel havia sido regiamente contratada por um conglomerado de investidores do ramo de recursos florestais.

Sua tarefa era produzir uma análise crítica da trajetória histórica dos sistemas florestais do Brasil e do mundo e, tomando-a por base, apoiar a corporação a realizar prognósticos empresariais. O resultado seria um dos elementos da nova estratégia corporativa e consistia em uma análise histórica, socioeconômica e ambiental do uso, manejo, produção, conservação, resiliência e recuperação de recursos florestais, no período de 2010 a 2090.

O ponto de partida era o Brasil do início do século 21. Era evidente que no setor de recursos florestais, dois fenômenos distintos, porém entrelaçados, haviam impedido o curso preconizado pela “expectativa dos comuns”: os saltos tecnológicos e as inovadoras políticas bioestratégicas, adotadas de 2020 a 2080. Outros elementos estiveram presentes e ainda eram fortes determinantes no trato, uso e preservação corporativos dos sistemas florestais no Brasil e no mundo, tais como a exigência voluntária ou regulada de produtos certificados e a (ainda) crescente influência dos acionistas globais na securitização reputacional do investidor.

Um dos saltos tecnológicos, com claras implicações políticas, deu-se pelo acoplamento pleno dos modelos de simulação econômico-sociais aos modelos climáticos de médio prazo: o acerto das previsões destes novos modelos e a credibilidade daí resultantes tiveram profundo impacto nos processos de consenso globais, convenções e regimes regulatórios, no sentido de elevar sua aplicabilidade e aceitação comercial a uma escala sem precedentes.


Estes regimes, que vieram a transformar radicalmente toda a economia, tiveram impacto ainda maior nas cadeias de produção, que tinham por base os recursos florestais. Por conseguinte, já em 2050, em seguimento a uma ampla convergência global dos arcabouços legais, bem como técnicas e sistemas de rastreamento, era possível traduzir e aplicar perdas (ou ganhos) que um acionista ou um consumidor teria, caso seus investimentos infringissem danos a (ou beneficiassem) bens comuns, nacionais ou globais.

Em termos práticos, um portfólio de ações seria permanente e instantaneamente reduzido em seu valor, caso a empresa florestal (ou qualquer outra) empregasse recursos fora de suas cotas ou protocolos de consenso. Era o casamento utópico do mercado com um regime regulamentar pleno e quase perfeito. Este foi um excelente exercício do possível, que resguardou os sistemas biológicos de manutenção do planeta e suavizou a passagem da “velha economia”, com forte base na exploração de recursos naturais (petróleo, minérios e recursos biológicos) para a “nova economia” (reciclagem, conservação, eficiência, pagamento por serviços ambientais, recursos renováveis e biotecnologia).

Naturalmente, a cobrança por serviços ambientais globais e a monetarização de perdas infligidas à biodiversidade haviam se incorporado aos regimes e às transações da economia global. Em parte, estas práticas de negócio e arcabouços de investimento, embora dolorosos, em seu período de implantação (1997-2045), foram apenas a conseqüência natural de profundas reformas políticas, motivadas e aceleradas pelos dramáticos impactos das mudanças climáticas a partir de 2050, o ano considerado como ponto de inflexão para grandes investimentos privados, em adaptação. A partir dali, o mundo havia mudado e os motores da mudança tinham sido perdas econômicas, ambientais e muita inovação.

O Brasil foi um dos mais dramáticos palcos das mudanças de clima e, conseqüentemente, de adaptação de seus sistemas florestais, mas do ponto de vista global, estas transformações não ocorreram com perdas irreversíveis. Contrariando novamente a “expectativa dos comuns”, o país também não se tornou o maior exportador mundial de biocombustíveis (mas deteve boa parcela deste mercado), nem o país das queimadas, da desertificação ou das monoculturas de commodities agrícolas.

Houve sim aplicações tecnológicas de muito sucesso, que o Brasil soube se posicionar. Em 2090, por exemplo, os processos enzimáticos de alta eficiência tornaram possível que 60% da produção mundial de combustíveis líquidos fosse realizada a partir de quase qualquer biomassa. Pioneiro nesta tendência, o Brasil, a partir de 2020, iniciou uma trajetória virtuosa, que o levou a exportar, em 2088, cerca de 20% do consumo mundial de biocombustíveis.

Cumulativamente, em território brasileiro são produzidos 50% dos concentrados de biomassa comercializados no mundo, matéria-prima para grande parte dos biocombustíveis da nova economia mundial, que finalmente se liberta dos combustíveis fósseis, em uma trajetória de traumatismos, razoavelmente suportáveis. Entre outras causas, essas mudanças podem ser atribuídas ao fato de que, após 2030, os custos atribuídos à emissão de gases de efeito estufa foram incorporados em quase todas as transações da economia, incidindo tanto sobre o preço da goma de mascar em Nova Maldives, quanto sobre o prêmio de um seguro contra enchentes no Butão.

Utilizando-se de espécies geneticamente modificadas e de alta eficiência, florestas plantadas são grandes coletores de energia e ponto de partida para a produção dos “concentrados de biomassa”. Ao contrário das florestas homogêneas do passado, a nova silvicultura mantém uma heterogeneidade capaz de sustentar um alto grau de biodiversidade e são exploradas seletivamente.

Por força das mudanças no clima, a produção florestal-energética mostrou-se competitiva com os biocombustíveis de grãos e outras culturas, que tem o mercado de alimentos como prioridade, mas são de menor contribuição na absorção líquida de carbono (apesar do avanço no plantio direto e das espécies perenes). Dessa forma, vencidos os custos transacionais e resolvidos os instrumentos de controle, a múltipla remuneração foi o instrumento capaz de viabilizar economicamente a recuperação das áreas degradadas e foi superado o dilema combustíveis versus alimentos. Outras tecnologias contribuíram para a manutenção da oferta e estabilidade de preços para os produtos florestais.

A partir da década de 2060, tornou-se comum, na Amazônia e no Centro-Oeste brasileiro, que espécies mais densas, modificadas para ciclo de crescimento acelerado, com maior absorção de carbono e com sistemas radiculares suportados por nanotecnologia, fossem processadas por sistemas inteligentes e móveis de corte fino para madeira, permitindo um aproveitamento de 80% do peso original da planta, nos produtos finais.

Um outro ponto de inflexão (positivo), foi uma surpreendente e profícua aliança da nanotecnologia a técnicas de adaptação genética, o que gerou espécies de alta produtividade, para produção florestal em geral e serviços ambientais. As máquinas celulares estavam a serviço do homem e da natureza e a operação ao nível de indivíduo era programada pela nanotecnologia, que foi um dos pilares da transformação ocorrida na segunda metade do século...” Antes que eu pudesse terminar a leitura, fui sugado de volta para 2008 e para o fim de semana. Mas prometo que ainda volto lá em 2090, seja por super-velhice ou pela descendência do meu filho. Afinal, será ele o herdeiro da vida e do planeta, neste potencial futuro da Raquel.