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Hélio dos Santos Pereira

Gerente Técnico do Departamento de Florestas do Ministério do Meio Ambiente

Op-CP-18

O código florestal brasileiro

Quando nos referimos a florestas, sempre temos a percepção de sua importância, seja pelas dimensões ou pelo seu valor ao bem-estar das pessoas. Nem sempre essa percepção está vinculada ao conhecimento e, muitas vezes, traduz apenas um sentimento de que as florestas contribuem para o clima, para qualidade da água, para o abrigo dos animais silvestres e outras funções que nem sabemos como acontecem.

O certo é que desejamos que elas continuassem existindo, mesmo que seja só para fazer “sombra”. O sentimento que invade a maioria de nós está relacionado às nossas origens e como aprendemos sobre o verde do nosso símbolo pátrio, inteiramente vinculado à dimensão das florestas. Para nós brasileiros, esse sentimento transforma-se em indignação quando se anuncia qualquer “ataque” às florestas, em especial, à amazônica. Temos um espírito de guarda e proteção sobre as florestas.

Essa percepção coletiva incomoda mais ainda quando olhamos, impotentes, para o conflito de interesses de uso e ocupação versus a vocação florestal de áreas como a Amazônia, a mata atlântica, o cerrado, o pantanal, etc. A impotência transforma-se em indignação quando ficam evidentes, na atual discussão, as propostas de alterações que alguns segmentos da agropecuária apresentam, implicando em uma descaracterização plena no instrumento de defesa das florestas.

No pacote de ações direcionadas contra o Código Florestal, há diversas táticas utilizadas com argumentos subjetivos, dentre elas a de que é difícil interpretar, que é antigo, que só o Brasil tem esses tipos de exigências. Esse conjunto de argumentos esconde a necessidade de apropriação de novas terras para a agricultura, sem que essa restaure as áreas já degradadas por práticas indevidas.

O adiamento da regularização de passivos ambientais, aparentemente, é uma questão de custo-benefício no qual desmatar é mais barato que recuperar passivos ambientais de milhões de hectares degradados existentes no Centro-Sul do país. Esse ataque não é diferente dos demais, e o objetivo foi sempre o mesmo: prorrogar a solução do passivo ambiental.

Foi assim em 1991, com a Lei da Política Agrícola, que criou um dispositivo no Código Florestal, ampliando para mais trinta anos a obrigação de regularização da Reserva Legal, e, em todas as demais alterações que se sucederam, teve-se o mesmo espírito de adiar a efetivação das responsabilidades. Basta fazer os balanços para verificar a quantidade de terras subutilizadas e degradadas que não foram recuperadas.

No entanto a sociedade, ao reagir contra essas iniciativas, delineou impeditivos inseridos nos regulamentos para a defesa das florestas, como as restrições sobre a ocupação de terras florestais, o uso de produtos com vinculação a práticas inadequadas de uso do solo, as restrições de créditos vinculados a possíveis desmatamentos, etc.

Sobre a lógica de que só o Brasil tem esse tipo de mecanismo de restrição de uso da terra, há um equívoco na forma de se divulgar a questão. Na verdade, nas outras nações, as restrições são maiores porque não há direito de propriedade sobre os recursos, e, quase sempre, o uso do solo é feito na forma de concessão.

Quanto às reservas florestais, todas são propriedade do Estado e só podem ser utilizadas na forma de concessões. Isso ocorre em países como o Canadá, a Austrália, a Alemanha, dentre outros.
Refletindo sobre as características do Código Florestal Brasileiro, devemos olhar primeiro para o contexto em que esse instrumento teve origem, em 1934: foi evoluindo e, hoje, não tem conflito com nenhum conceito constitucional sobre o direito de propriedade e nem com os princípios de sustentabilidade e interesse social que caracterizam a Constituição.

Essa característica do Código está associada ao fato de que é dele o advento do ordenamento do uso do solo, seja no espaço rural ou urbano. Quando o Código estabelece o ordenamento, distribuindo o espaço de uma propriedade rural ou os espaços coletivos do ambiente urbano em faixas de proteção, conservação e uso, estão se promovendo, na verdade, as garantias para permitir a sustentabilidade da propriedade e gerando as condições de manutenção da integridade da paisagem.

Assim, os elementos de uso limitado criados pelo Código Florestal, como as Áreas de Preservação Permanentes (APPs) e Reserva Legal (RL), visam proteger, individualmente, a propriedade e garantir a integridade daqueles elementos de interesse coletivo, como os mananciais, as montanhas, o clima, etc. A importância do Código para as questões ambientais são mais amplas que as nossas florestas, isso porque trata do uso e acesso das demais formas de vegetação.


Portanto, essa sensação de que os ambientes não florestais são irrelevantes é danosa para o processo de uso e ocupação dos solos e, principalmente, para a produção de água, uma vez que as nascentes quase sempre estão em ambientes abertos como o cerrado. Isso reflete, na verdade, a diversidade dos biomas e a importância de cada um para a integridade ambiental do território brasileiro.

Nos conceitos de preservação contidos nos dispositivos das APPs, estão inseridas a necessidade desses espaços existirem na propriedade como essenciais para garantir água e a estabilidade dos solos, e por isso estão definidas no entorno das nascentes, nas faixas marginais de leito d’água, áreas inclinadas, topos de morro, etc.

Já o conceito de uso limitado da RL teve origem na geração e escassez de energia e necessidade de uso madeireiro das propriedades, devendo ser entendida como uma reserva de valores e estabilidade para a propriedade. É dela que não só extraímos a lenha (e com a qual fazemos as construções rurais), mas também o sustento de milhões de brasileiros que sobrevivem
do extrativismo.

Já nas áreas de uso alternativo do solo definidas no Código Florestal, estão as disposições para a conversão de áreas para o plantio agrícola e pecuário, que, por falta de zelo, crescem em áreas degradadas. O que tem a ver a agropecuária com os interesses na mudança do Código Florestal? Se transformadas em uso alternativo do solo, as RLs e APPs deixarão de pertencer ao interesse coletivo e serão incorporadas ao processo de expansão da agricultura.

A estratégia vem ocorrendo travestida de justificativas, como a suposta necessidade de se computar as Reservas Legais às APPs, que ajudaria a fugir do passivo ambiental e a reduzir as RLs, o que certamente ampliará o desmatamento; com a consolidação de atividades sobre APPs e RLs, também não haverá passivo e se gerarão condições para a suspensão de penalidades; com a prorrogação do prazo de vigência do regulamento da lei de crimes ambientais, desobstruindo as linhas de créditos e a não regularização das atividades ambientais na propriedade rural.

Ao longo dos anos de defesa do Código Florestal, muito se escreveu, muito se discutiu, e poucos reconheceram a importância dos instrumentos para a gestão territorial brasileira. Suas alterações, até aqui, trataram de ampliar as funções que visam ao ordenamento da propriedade com base no papel das florestas, para a proteção das águas e da diversidade biológica, bem como nos instrumentos do zoneamento ecológico e econômico.

Olhando para o futuro, não há como deixar de ver a incorporação de temas essenciais para a existência de populações tradicionais, silvícolas e produtores rurais que não seja o pagamento pelos serviços ambientais decorrentes da compensação das funções em relação à água e ao clima.
Para isso, será indispensável que esses mecanismos criados pelo Código, como a RL e as APPs, sejam os elementos para oferecer garantias para o reconhecimento dos valores econômicos e de serviços ambientais gerados na propriedade rural.

A perplexidade que esse momento de discussão sobre o Código Florestal traz é que ele ocorre justamente com a discussão sobre o clima, e as evidências indicam que temos que mudar o jeito como lidamos com as emissões de poluentes advindos da queima de combustíveis para geração de energia ou da queima das florestas para expansão da agropecuária.

Nós, brasileiros, temos sorte de termos construído nossa matriz energética sob bases limpas, usando álcool e hidrelétricas, por exemplo. E ainda temos a quantidade de florestas e a tecnologia de reflorestamento servindo como solução para os problemas climáticos,
seja conservando, seja plantando. Metas serão importantes para referenciar os rumos e os objetivos, mas a saída será a mudança de comportamento em relação às florestas.

Se todas as propriedades do Centro-Sul do país incorporassem as áreas degradadas ao processo produtivo, a Amazônia, certamente, ganharia um fôlego de 30 anos. Olhando para a discussão sobre as mudanças climáticas e o quanto isso pode afetar as florestas, não podemos desprezar a “frieza” da situação.

No fundo, trata-se de uma negociação entre
países, que veem o quanto ainda podem emitir e o quanto podem tirar de benefícios dessa negociação.
Hoje, existe um mercado e mecanismos de crédito, com agentes financeiros interessados e envolvidos. Os instrumentos de mercado serão internalizados de maneira subjetiva e gradual.

Entretanto, nessa discussão das mudanças climáticas, a única coisa certa é a “previsão do clima para os próximos anos”. Dessa forma, para nós, qualquer que seja a indicação de solução ou a conclusão sobre qualquer avaliação que se faça sobre clima no Brasil, chegaremos a equações que, necessariamente, incorporam as florestas.

E, mesmo sem fazer qualquer prognóstico sobre as eventuais decisões da COP15, podemos arriscar que, se tivermos capacidade de reduzir o desmatamento, ganharemos com o mecanismo do REDD (Redução de Emissões para o Desmatamento e Degradação). Se aproveitarmos as tecnologias de plantio florestal, recuperando áreas degradadas, ganharemos com o MDL (Mecanismo de Desenvolvimento Limpo).

Assim, se olharmos para as oportunidades pós-COP15, veremos que aqueles que tiverem capacidade de produção de insumos e tecnologia de restauração e recuperação de áreas degradadas terão muito mais benefícios para o aproveitamento local, com efeitos que serão reconhecidos globalmente. Para tanto, o marco regulatório contido no Código Florestal será fundamental para o processo de restauração de ambientes a serem protegidos e conservados.

Outra questão refere-se à guarda das florestas. Isso não se deve somente pelo simples registro constitucional, mas pela necessidade de garantir o futuro das gerações. A importância do Código Florestal para as florestas, no contexto da sociedade, fez mudar os eixos da discussão ambiental, trazendo importantes reflexos na forma como se pratica a gestão de recursos naturais no país.

A gestão das florestas não deve ser focada apenas na razão da produção madeireira e sim nos aspectos mais amplos que envolvem as funções ambientais que geram abrigo e proteção aos ciclos de vida da fauna, assim como na geração de serviços ambientais voltados para todos. Quando reclamamos da presença das entidades sociais nas discussões de soluções, como se fosse ingerência sobre o direito de propriedade, devemos refletir sobre o que queremos de conservação e proteção dos recursos naturais, como estamos desprezando a maioria dos valores contidos nas florestas e como os movimentos ambientalistas preconizam a sustentabilidade com base em ações que desejam ver refletidas no Código Florestal do século XXI.

O resultado da luta pelo Código Florestal de hoje teve alcance na possibilidade de melhorar o controle social sobre as obras de interesse coletivo que, inevitavelmente, tenham que ocupar florestas e que, de qualquer forma, o acesso tenha que ser restrito e localizado e que os danos sejam reparados de maneira preventiva. O papel do governo em relação ao Código Florestal, em nossa opinião, é a manutenção da estrutura desse marco regulatório e a busca por regulamentos que tornem cada vez mais simples a sua interpretação e mais fácil a sua execução, transformando a percepção de obrigações em benefícios à propriedade.