Me chame no WhatsApp Agora!

Odair Correa Bueno

Professor de Biologia Geral e Aplicada da Unesp-Rio Claro

OpCP70

Saúvas: do laboratório ao campo
Há cerca de 14 mil espécies de formigas catalogadas em todo o planeta. Estima-se que a abundância de formigas no ambiente terrestre é de 20x1015 indivíduos, dos quais 3x1015 são epigeicos (forrageiam sobre o solo). Assim, a biomassa de formigas equivale a 12 megatons (12x106 toneladas) de carbono, ou seja, 20% da biomassa humana. 

Entre as importâncias das presenças de formigas na superfície terrestre, além do acúmulo de biomassa, destacam-se como principal predador do ambiente (animais vivos ou mortos), desfolhadoras de plantas, coletoras de pólen e néctar (principalmente dos nectários extraflorais) das plantas e na ciclagem de nutrientes. Nos padrões ecológicos, atuam na dispersão de sementes.

Todas as espécies de formigas são eussociais (altamente sociais) e pertencem a uma única família de Hymenoptera, Fomicidae. As saúvas estão incluídas na subfamília Myrmicinae, tribo Attini e subtribo Attina, com cerca de 140 espécies que cultivam fungo mutualista e ocorrem exclusivamente nas Américas. Três gêneros (Atta, Acromyrmex e Amoimyrmex) são conhecidos como cortadeiras de folhas, entre eles, estão as saúvas. No setor florestal, destacam-se duas espécies: Atta sexdens (saúva limão) e Atta laevigata (saúva-cabeça-de-vidro).

Os hábitos alimentares dos primeiros Hymenoptera são basicamente os mesmos dos demais insetos: fitófagos, ou seja, consumidores primários das plantas terrestres. O surgimento da holometabolia permitiu que jovens e adultos de uma mesma espécie utilizassem recursos alimentares diferentes, evitando a competição entre eles, e passaram a exercer a herbivoria larval e zoofagia larval. Nesses últimos, desenvolveu o ovipositor, que, com adaptações, deram origem ao ferrão.

Parte desses insetos retornaram à condição fitófagos, como as abelhas, as vespas e as formigas, mas não utilizando diretamente as plantas na alimentação, e sim explorando, de várias maneiras, os produtos vegetais já elaborados como ampla forma de se alimentar. Depois, um grupo dessas formigas passaram a utilizar o material vegetal para o cultivo de seu próprio alimento, com o auxílio de um fungo, considerado a principal fonte alimentar da colônia. Entre elas, as mais derivadas são as formigas-cortadeiras. 

Esses insetos, originalmente com ferrão, têm em comum a vida em sociedade. Diferentes das abelhas, cujo comando está centrado na rainha, as formigas não apresentam um comando central, mas sim de toda a sociedade. O fungo mutualista das formigas-cortadeiras é um Basideomycota (basidiomiceto), dentro da Ordem Agaricales, espécie Leucoagaricus gongylophorus, que raramente aparece na forma reprodutiva (cogumelo) e é encontrado só no interior dos ninhos; portanto ele é transferido pelas içás durante o voo nupcial ao estabelecer um novo sauveiro. 
 
As primeiras operárias, quando emergem, organizam uma estrutura com os fragmentos vegetais, formando uma estrutura semelhante a uma esponja, o jardim de fungo. Ele é constituído basicamente de hifas longas e, no seu final, forma uma estrutura arredondada denominada gongilídeo, rica em nutrientes: açúcares, proteínas e lipídeos. Ao conjunto de gongilídeos dá-se o nome de estáfila, principal estrutura que é fornecida às larvas durante sua alimentação.

O aparelho digestório das formigas adultas apresenta, antes da boca propriamente dita, uma cavidade onde elas armazenam o alimento antes de ir para o estômago. Essa cavidade infrabucal funciona como um filtro, limitando a passagem de material. Nas saúvas, ele é responsável pela retenção de partículas sólidas, de forma que não passa para o estômago nada maior do que um micrômetro. Isso implica que as saúvas adultas só ingerem alimentos líquidos. Por outro lado, as larvas das formigas apresentam um aparelho bucal típico dos insetos mastigadores e, portanto, ingerem tanto líquidos como sólidos (os adultos chupam cana e as larvas comem cana). 

Outro aspecto interessante está relacionado às estruturas exclusivas que ocorrem nas formigas adultas. Primeiro, no final do tórax, de cada lado, aparecem duas aberturas das glândulas metapleurais, responsáveis pela produção de compostos antimicrobianos, que evitam a contaminação do ninho por microorganismos. O segundo é a presença de um par de glândulas do sistema salivar que se abre no final da faringe, são as glândulas pós-faríngeas ou divertículo do intestino anterior. Eram consideradas exclusivas das formigas, mas, recentemente, foram observadas em algumas vespas. A função dessas glândulas sempre foi discutível, inicialmente relacionada à produção ou à mistura de compostos (hidrocarbonetos) responsáveis pelo odor da colônia, mas, recentemente, foi verificado que elas são responsáveis pelo metabolismo de lipídeos ingeridos durante sua alimentação.
 
Para compreender as dificuldades encontradas no controle dessas formigas, é necessário entender a complexidade de um sauveiro. A alimentação principal se dá com o ataque aos vegetais, principalmente as folhas. Durante o corte das folhas nas plantas e depois o recorte dessas folhas no solo ou no interior do ninho, as operárias adultas realizam a ingestão de seivas e preparam os pequenos pedaços recortados para formar e manter um jardim de seu fungo mutualista. 

Ele é responsável pela degradação do material vegetal e por transformá-lo em compostos mais simples para a nutrição das formigas, especialmente para as larvas, que os recebem diretamente na boca pelas operárias. Também devido à digestão extracelular do fungo, o jardim fica repleto de açúcares, principalmente a glicose que pode ser ingerida na nutrição das operárias maiores. A rainha da colônia também recebe diretamente na boca pedaços de fungo fornecidos pelas operárias.

No interior do ninho, ocorrem bactérias protetoras juntamente com as secreções das glândulas metapleurais, cujos produtos evitam a contaminação do jardim de fungo. Além disso, ocorre uma vasta quantidade de microorganismos associados que auxiliam na degradação no material vegetal e na proteção das formigas adultas e imaturas contra organismos entomopatogênicos. Por outro lado, fungos antagonistas ao mutualista também ocorrem no interior da colônia cujo desenvolvimento é impedido pelas operárias e bactérias protetoras. Eles só se desenvolvem quando as operárias perdem o controle da manutenção do sauveiro. 

As formigas-cortadeiras, apesar de serem citadas desde a época do descobrimento do Brasil, continuam ocupando lugar de destaque no cenário da agricultura e na implantação de florestas no País. Muitas vezes, são referidas como pragas-chave em reflorestamentos, pragas severas na agricultura e, em certas monoculturas, como a da cana-de-açúcar, de citros e em pastagens, citadas em muitos artigos científicos. Acrescenta-se que as tentativas de controle desses insetos são tão antigas quanto seu status de praga, mas, com certeza, estamos perdendo de goleada. Não é por falta de trabalhos com as formigas, pois existem, na literatura mundial e especialmente na brasileira, milhares de artigos sobre as cortadeiras; porém, mais de 80% se referem diretamente ao controle, muitos estão desatualizados, e a repetitividade é muito grande. Esse tipo de publicação se perde no tempo.

Dois fatores contribuem para isso: a não diversificação de ingredientes ativos eficientes e o baixo investimento no conhecimento das formigas-cortadeiras, incluindo o monitoramento adequado. Se a perda causada por essas formigas na silvicultura pode atingir milhões de reais, por que não ampliar os investimentos no maior conhecimento dessa sociedade e na interação com o ambiente e na formação qualificada da mão de obra que realiza o monitoramento e o controle desses insetos? Importante salientar que vem ocorrendo uma redução drástica no número de pesquisadores envolvidos especificamente na área.
 
Diversos produtos comerciais e métodos de controle são indicados para o combate das formigas-cortadeiras. Isso ocorre a despeito da procura intensa por novos produtos e alternativas de controle, até agora não encontradas.  Ao longo desse tempo, tem-se constatado uma grande evolução na atitude das organizações da silvicultura frente ao controle das cortadeiras, como a procura de produtos químicos mais seletivos e de menor impacto ao ambiente, a redução na quantidade desses produtos a serem aplicados no campo e, sobretudo, o desenvolvimento de uma consciência de preservação ambiental. Tudo isso, naturalmente, conduz ao manejo integrado de formigas-cortadeiras, passando pelo monitoramento, que já faz parte das atividades da maioria das empresas de reflorestamento no Brasil.

A indústria química mundial não está investindo na descoberta de novas moléculas, basta lembrar o artigo da Nature (Volume 543, 2017) “When the pesticides run out”. Não é o que ocorre com outras pragas agrícolas, onde há altos investimentos na química de agrotóxicos, e também no conhecimento da praga e no emprego de novas metodologias.
 
O controle biológico sempre citado como importante tem revelado pouca aplicabilidade com as formigas, mas sempre se deve ter esperança de sucesso. Poucos estudos relacionam os fatores envolvidos na capacidade defensiva das formigas-cortadeiras, vide a complexidade do sauveiro. A investigação dos mecanismos de defesa, tais como o comportamento social e a presença de simbiontes, se tornam relevantes, já que possibilita esclarecer a capacidade de detecção e remoção de patógenos pelas operárias e mesmo detectar a presença de compostos químicos indesejáveis. Pesquisas básicas que abordam esse tema podem revelar características fisiológicas das formigas-cortadeiras e podem contribuir para repensar os métodos de controle utilizados atualmente.
 
As formas de controle químico das formigas-cortadeiras são amplamente conhecidas, mas a tecnologia de iscas tóxicas é a única até o momento possível de mensurações. Atualmente, ela é a forma mais utilizada na silvicultura, ultrapassando o nível de 80%.

As novidades no setor de controle de formigas-cortadeiras ocorrem pela nova forma de aplicação de inseticida líquido pela pulverização direta no solo, ainda muito pouco avaliado, e a utilização de iscas tóxicas resistentes à umidade, que permitem ser utilizadas em regiões mais chuvosas e com alta umidade do solo.

As grandes falhas no combate às formigas-cortadeiras estão relacionadas ao uso de ingredientes ativos não adequados, que provocam a repelência das formigas ou têm ação muito rápida, o que também afasta as formigas, e ao monitoramento inadequado ao estabelecer o que é um ninho, estimativa do seu tamanho, cálculo utilizado para quantificar a quantidade de isca a ser aplicada, os locais em que devem ser aplicadas e as formas de aplicação (mecanizada ou manual). Mesmo utilizando as melhores iscas do mercado, as técnicas de monitoramento e de aplicação são as responsáveis pelo baixo nível de sucesso no controle das formigas-cortadeiras.

Na verdade, as florestas implantadas podem ser, para os pesquisadores, verdadeiros laboratórios ao ar livre e de grandes dimensões, processo ainda no início. O investimento na formação de recursos humanos qualificados também é fundamental para não repetir os feitos no passado.

O grande sonho: seria pensar na lógica da engenharia reversa. Em termos de controle de formigas-cortadeiras, tem que ser envolvidos os figurantes da ação: as plantas, o monitoramento, incluindo a aplicação das iscas e a sociedade das formigas. Para as plantas, é possível pensar no melhoramento genético, na biologia molecular, incluindo a transgenia. No monitoramento, investir na formação de pessoal qualificado e competente e nas formas de aplicação e seus equipamentos, como a utilização mecânica e de drones. 
 
Em se tratando da sociedade das saúvas, a mais complexa das formigas, os pesquisadores agrícolas (agrônomos e engenheiros florestais) e biológicos podem contribuir. Isso está em falta, mas, quando for possível, que seja com ousadia. O artigo da Nature sinaliza investimentos no biocontrole, tanto o clássico como em novas tecnologias, como as ômicas (genômica e proteômica), engenharia genética, entre outras. Isso está ocorrendo com outras pragas, principalmente aquelas com mercado mundial de amplo retorno. 
 
Os custos de novas tecnologias e de formação de recursos humanos de alto nível são elevados, e as agências financiadoras brasileiras (seus gestores e analistas) têm pouca sensibilidade em aprovar projetos audaciosos e de alto risco.

Portanto, está mais do que na hora de ocorrerem mudanças radicais; não que isso vá resolver de imediato o problema, mas dará início a uma nova era, não só investindo em novas linhas de pesquisa, mas também na formação de recursos humanos qualificados. 
 

As ações devem ser conjuntas, coordenadas e centradas no objetivo final, para potencializar os esforços no controle desses insetos. Não significa impedir a realização de determinada pesquisa por um pesquisador ou alguém de seu grupo, mas sim interagir nas discussões sobre o que pode e como ser realizado de forma ágil e com respostas práticas.

Uma questão essencial a ser esclarecida é a seguinte: será que o combate às formigas-cortadeiras tem alcançado seu objetivo, considerando que há mais de 50 anos é realizado, principalmente com iscas formicidas? Lembro aquele senhorzinho sentado na frente da roça; quando perguntado sobre um enorme ninho de formigas, ele diz: “Olha, moço, aquela saúva está ali há mais de 60 anos, não acaba nunca”.