Ambientalista
Op-CP-39
Estamos assistindo, no Brasil, a algo que rompe com o imaginário popular: uma crise de água sem precedentes e que está abalando radicalmente a noção de abundância hídrica ilimitada. Várias razões explicam essa noção. Uma delas, aliás, já estava presente na carta que Pero Vaz de Caminha enviou ao Rei de Portugal, relatando as riquezas da terra descoberta. Além disso, o fato de sermos portadores da maior bacia hidrográfica do planeta também contribui fortemente para a construção desse imaginário.
Estudos que demonstram cenários de escassez em algumas regiões do País existem há décadas, mas, certamente, não foram suficientes para fazer com que entendêssemos, com clareza, sobre a distribuição da água e a necessidade de um consumo mais eficiente desse recurso. Alguns avanços institucionais ocorreram nos últimos anos, sendo importante ressaltar, em nível nacional, a edição da Política Nacional de Recursos Hídricos (PNRH) em 1997 e, em seguida, a criação da Agência Nacional de Águas – ANA.
Pessoalmente, tive a oportunidade de ser um dos relatores da PNRH. Inequivocamente, conseguimos construir uma legislação consistente, moldada em uma visão moderna de gestão de água. Uma das inspirações dessa lei foi o Capítulo 18 da Agenda 21, um dos produtos mais prestigiados da Conferência do Rio em 1992. Pouco tempo depois da edição da PNRH, com a criação da ANA, o Brasil sinalizou que passaria a tratar de sua água doce com mais seriedade.
Afinal, a água estaria para a ANA assim como as telecomunicações e o petróleo estariam para a ANATEL – Agência Nacional de Telecomunicações e para a ANP – Agência Nacional de Petróleo, respectivamente. Ou seja, o País estaria conferindo ao tema a importância estratégica que hoje o mundo reconhece. A PNRH inovou ao estabelecer novos paradigmas de governança com a implantação dos comitês de bacia, a instituição da outorga e, especialmente, com a possibilidade da cobrança pelo uso d’água, a ser distinguida do pagamento pela coleta, armazenamento, tratamento e entrega, atividades estas usualmente realizadas pelas entidades de saneamento.
Ou seja, a água deixaria de ser um bem livre e, com isso, passaria a ter um valor econômico. Mas, se, de fato, o Brasil possui legislação, institucionalidade e uma série de instrumentos legais para uma boa gestão da água, como explicar a situação de pré-colapso que estamos vivendo em algumas regiões metropolitanas, com ênfase em São Paulo? A primeira resposta, a meu ver, é compreender que os impactos gerados pela humanidade estão exigindo uma nova mentalidade e abordagem de situações.
No caso de São Paulo, é importante assinalar que, durante os 80 anos de medições, nunca houve uma estiagem com essa intensidade. Ou seja, realmente é difícil afirmar que a causa principal seja o aquecimento global, mas, por outro lado, a ciência não autoriza a exclusão radical dessa hipótese. Além disso, a urbanização realizada em uma velocidade extremamente acentuada gera o fenômeno das “ilhas de calor” que, em parte, podem explicar o deslocamento das chuvas.
Alguns também acreditam que a estiagem estaria diretamente ligada ao desmatamento da região Amazônica, em razão da existência dos chamados “rios voadores”. O que podemos afirmar, com certeza, é que essa crise de água não pode ser desperdiçada: devem ser criadas propostas que permitam a implementação de políticas públicas mais efetivas, quer na oferta de água, quer no gerenciamento da demanda.
No caso da oferta, em primeiro lugar, certamente teremos que fazer um grande esforço para compreender melhor o ciclo hidrológico e, com isso, nos preparar para garantir, a médio e longo prazo, a disponibilidade de água para os vários usos. Isso significa uma abordagem holística que reconheça o papel das florestas e das demais formas de vegetação no ciclo hidrológico.
No caso de São Paulo, é bom lembrar que dois dos seus principais mananciais, Guarapiranga e a Billings, foram sistematicamente invadidos para implantação de loteamentos clandestinos, o que veio a comprometer a disponibilidade e, notadamente, a qualidade da água daqueles reservatórios. A omissão sistemática do poder público, estadual e municipal, aliada a um modelo de ocupação equivocado comprometeram duas das principais “caixas d’água” da região metropolitana da cidade.
Essas “caixas d’água” estavam protegidas pela existência de uma grande massa de vegetação (Mata Atlântica) no seu entorno, que garantia o abastecimento de grande parte dos milhões de habitantes. Além da Guarapiranga e da Billings, a região metropolitana possui outras “caixas d’água” representadas pelo Sistema Cantareira. Este, por sua vez, assistiu a uma dramática supressão de suas matas, de modo que, hoje, ao acompanharmos minuciosamente o seu nível pelo noticiário, deveríamos considerar que a inexistência de vegetação agrava a crise.
Infelizmente, o comprometimento de mananciais no entorno das grandes cidades e regiões metropolitanas não é uma exclusividade de São Paulo, sendo uma regra de praticamente todas as principais capitais brasileiras. Portanto, se quisermos tirar alguma lição do que muitas dessas cidades estão vivendo, teremos que formular políticas públicas integradas, respaldadas em uma abordagem holística, que venham a contemplar, entre outras coisas, a necessidade de conservação de fragmentos florestais nativos, bem como de recomposição daqueles que foram suprimidos nas últimas décadas.
Nesse último caso, teremos que assumir estratégias inteligentes e flexíveis que permitam a recomposição com espécies nativas, mas admitindo, em certas circunstâncias, a recuperação com outras espécies que iniciem o processo de sucessão florestal. Por fim, é bom lembrar que a implantação do Cadastro Ambiental Rural (CAR) e do Programa de Regularização Ambiental (PRA), introduzidos pela nova legislação florestal, serão elementos estruturantes na implementação de políticas públicas que venham assegurar o reconhecimento das florestas como indispensáveis à garantia do abastecimento de água da população brasileira.