O Brasil possui a maior área de floresta tropical contínua do planeta, a Amazônia, que também abriga a maior bacia hidrográfica em disponibilidade de água. Não é pouco e nos traz um grande desafio de como desenvolver atividades florestais efetivamente sustentáveis, assegurando a manutenção do bioma e de seus serviços ecossistêmicos. Enfrentar esse desafio demanda conhecimento, e não há como construí-lo sem considerar uma das grandes riquezas da região: sua sociodiversidade.
Os processos, as práticas e as atividades tradicionais dos povos indígenas, quilombolas e populações tradicionais relacionados ao uso das florestas têm passado de geração para geração, dos mais velhos aos mais novos, e constituem uma parte muito significativa do conhecimento florestal que hoje acumulamos, embora boa parte dele não seja compartilhado para além das próprias comunidades.
Os conhecimentos sobre os ecossistemas, as técnicas de manejo de recursos naturais, propriedades farmacêuticas, alimentícias e agrícolas de espécies animais, vegetais e fúngicas fazem parte de uma riqueza ainda inexplorada no Brasil e que poderia contribuir de forma inequívoca ao melhor manejo florestal e ao desenvolvimento de produtos oriundos das florestas.
Assim como os conhecimentos associados ao uso da biodiversidade reduzem significativamente o esforço de pesquisa, funcionando como indicador de quais organismos possuem propriedades de interesse farmacológico ou mesmo industrial, o conhecimento sobre a floresta pode contribuir muito para seu melhor aproveitamento, principalmente considerando a perspectiva de uso múltiplo.
Essa perspectiva de uso múltiplo dos recursos florestais, fundamento do uso tradicional das florestas pelas populações tradicionais, pode ser o grande diferencial para fazer do manejo florestal sustentável uma realidade viável, tanto ambiental quanto social e economicamente. A ideia de buscar o melhor aproveitamento dos diferentes recursos florestais concomitantemente é o inverso das formas de exploração florestal que priorizam apenas um produto – a madeira, ou as fibras, ou os frutos – e constitui um novo paradigma para o desenvolvimento florestal. É o tradicional propondo a vanguarda.
Para promoção desses novos paradigmas, é fundamental que a construção do conhecimento florestal se dê considerando novas abordagens, como a das etnociências, campo interdisciplinar que estuda as relações que se estabelecem entre as comunidades tradicionais e a natureza. Com base nas etnociências, é possível estudar os saberes das populações humanas sobre os processos naturais, revelando as lógicas subjacentes a seus conhecimentos.
A etnobotânica aborda a forma como diferentes grupos humanos interagem com a vegetação, explorando tanto as questões relativas ao uso e ao manejo dos recursos vegetais quanto à sua percepção e classificação pelas comunidades locais. Pesquisas nessa área facilitam a determinação de práticas de manejo com finalidades utilitárias. Incorporar a etnobotânica e a etnoecologia para o desenvolvimento de medidas e propostas que visem à sustentabilidade pode ajudar a solucionar problemas comunitários ou de gestão florestal.
A etnoecologia busca desvendar, compreender e sistematizar cientificamente todo um conjunto de teorias e práticas relativas ao ambiente, oriundas de sua experimentação empírica por culturas tradicionais, indígenas ou autóctones. As populações tradicionais detêm grande quantidade de informações, muitas vezes ainda inexploradas pela academia, sobre as formas de lidar com ambientes biologicamente diversificados e que podem ser muito úteis para a compreensão desses ecossistemas e para o desenvolvimento de práticas menos predatórias ao meio.
Uma das mais relevantes publicações sobre o uso da floresta, a Enciclopédia da floresta – o Alto Juruá, práticas e conhecimentos das populações, é um bom exemplo de como o conhecimento tradicional e a interdisciplinaridade são abordagens fundamentais para dar conta da complexidade das florestas tropicais megadiversas.
Além de registrar a riqueza do conhecimento das populações nativas e a importância da biodiversidade e da sociodiversidade, a Enciclopédia da floresta reforça o reconhecimento do saber tradicional como forma de ciência válida. Mas ainda são poucas e incipientes as iniciativas acadêmicas que buscam incorporar o conhecimento tradicional no desenvolvimento científico e tecnológico. Assim como nas políticas públicas.
Esse é um desafio ainda a ser enfrentado, mas que se mostra cada vez mais necessário nesse contexto de graves crises ambiental e climática que nos impõem novos desafios. Apesar dos grandes avanços do País no setor florestal, o manejo sustentável de florestas nativas ainda é um grande desafio, e experiências de manejo florestal comunitário podem, por exemplo, contribuir para a construção de propostas relevantes para sua viabilização, seja a partir das práticas de gestão participativas e da diversidade de arranjos institucionais possíveis, seja nas diferentes estratégias de usos em função das características dos recursos manejados, potencializando a lógica de uso múltiplo dos produtos florestais.
Não há nada mais moderno do que o conhecimento tradicional, produzido em rede e compartilhado. O conhecimento que as comunidades locais têm dos processos ecológicos e das práticas tradicionais de manejo de recursos naturais são também o caminho para a compreensão dos serviços ambientais oriundos das florestas, cujo reconhecimento e valorização podem constituir a peça-chave para a viabilidade do manejo florestal.
É no uso tradicional da floresta feito pelos povos da região que ela se mantém viva, e, é a partir desse conhecimento tradicional, que o manejo florestal poderá também contribuir para a manutenção das florestas. Em tempos de mudanças climáticas, não basta ver a floresta como provedora de madeira ou outros produtos. Há que se reconhecer nela muito mais do que isso, e para isso é preciso aprender com quem vive da e com a floresta.
“A gente não vê a floresta como uma coisa que tem a obrigação de nos dar recurso, a gente tem que ver ela como parte de nós. Não é só manter a floresta em pé, mas ficar em pé com ela. Em nenhum momento trocamos a nossa vida, o nosso modo de viver, por outro que não é nosso”, atenta Juma Xipaya, cacique da aldeia Tukamã, Terra Indígena Xipaya.