Professor de Economia da Escola de Administração de Empresas da FGV
Op-CP-39
Há perspectiva de que a escassez de chuvas no verão de 2013/2014, em São Paulo, a pior da série histórica de 125 anos de medições, não seja uma mera anomalia para ficar na história. De fato, foi surpreendente a sua repetição no verão 2014/15, há pouco encerrado. Por outro lado, fatores climáticos intervenientes, que vão da escala planetária (aquecimento global), continental (desmatamento da Amazônia e impacto sobre os “rios voadores”) e local (baixa cobertura vegetal na bacia do Cantareira, principal sistema produtor) indicam que poderá haver maior frequência e intensidade de instabilidade no regime de chuvas.
Isso implica se rever o planejamento de abastecimento de água de três regiões metropolitanas bastante industrializadas (São Paulo, Campinas e Paraíba do Sul) e se intensificar ações de adaptação e uso racional da água. A indústria paulista tem oferecido bons exemplos no manejo da água. A despeito de alguma deficiência em certos segmentos e na pequena indústria, houve inegável grande avanço na adoção de boas práticas, no tratamento de efluentes industriais, na redução do consumo específico (por unidade de bem fabricado) e no reúso.
Isso resultou de parceria prolongada, ao longo de várias gestões, entre o setor e a Cetesb e da incorporação de inovação, objeto de premiações anuais pela Fiesp. Contudo o cenário adverso projetado para o futuro exige um esforço ainda maior. A atual crise já afeta a atividade de algumas indústrias hidrointensivas, e um exemplo notório é a Rhodia de Paulínia, que teve atividades paralisadas em dois momentos da atual crise. Cabe enfatizar que a crise se estende por todo o Centro-Sul e afeta mais os estados industrializados, Rio de Janeiro e Minas Gerais, e temos a estiagem de inverno pela frente.
São Paulo, através da Sabesp, está implementando várias iniciativas para ampliar a disponibilidade hídrica, incluindo plantas de reúso de água, a transposição da bacia do rio Paraíba do Sul, entre outras. Contudo o setor industrial tem ciência de que, por força de lei, em especial a 9.433/97, que instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos, a prioridade é para o abastecimento humano.
Felizmente, abre-se uma janela de oportunidades para o reúso, já que muitas das atividades industriais podem prescindir de água com qualidade potável. Além disso, o reúso é algo que pode ser feito tanto nas próprias fábricas, a partir de seus efluentes e pela captação de água de chuva de telhados e pátios, como em estações de tratamento de esgoto (ETEs) da Sabesp, instalando-se novas e ampliando as atuais cinco EPARs (estações de produção de água de reúso).
A capacidade atual é de 395 mil m³/mês através das ETEs ABC, Barueri, Parque Novo Mundo, São Miguel Paulista e Jesus Neto, todas na Região Metropolitana de São Paulo. Entretanto, atualmente, o fornecimento é de apenas 138 mil m³/mês para 55 clientes, entre os quais prefeituras e indústrias. Há duas razões para isso:
1. há ojeriza a um produto advindo diretamente do esgoto, e cabe quebrar esse paradigma, a exemplo do que ocorreu em países como Espanha, Itália, Israel, Austrália e Singapura;
2. as dificuldades na logística de distribuição, que pode ser feita via adutoras para vazões suficientemente grandes, e proximidade das ETEs, ou por caminhões-tanque.
Como eles têm dedicação exclusiva, não se podendo realizar desinfecção para transporte de água potável, o custo de frete é elevado pelo domínio da oferta. Uma possível solução, que ainda não decolou, seria utilizar contêineres flexíveis de plástico, que tornam viável usar caminhões de carroceria aberta, cujo frete é mais barato. Os sacos colapsáveis seriam guardados após o uso.
Tal solução foi desenvolvida pela Sansuy para água potável para as tropas brasileiras no Haiti, e a Sabesp tentou viabilizá-la para o mercado de água de reúso. Não se obteve êxito, pois as transportadoras especializadas que detêm os caminhões-pipa dedicados não têm interesse em abdicar da receita mais alta e os clientes não se interessaram ainda em assumir o transporte.
Por outro lado, há um fator facilitador. O advento da tecnologia de membranas de ultrafiltração e a queda crescente de preço das membranas permitem se realizar o polimento do efluente final em plantas compactas de alta produtividade e com total remoção de microorganismos. Assim, essa é uma via para evitar que a falta de água superficial leve à suspensão temporária de captações outorgadas em corpos d’água ou de fornecimento via rede.
Um sinal dessas restrições crescentes é a revisão temporária dos contratos de demanda firme que a Sabesp celebrou com grandes clientes que recebiam condições comerciais mais atrativas para manter a compra a longo prazo e também adotar soluções ambientais envolvendo o reúso. Vale ressaltar que esse mecanismo oferecido ao mercado, a partir de 2008, propiciou também maior regularização, tanto em outorgas de poços como na cobrança de efluente gerado e lançado na rede pública.
Os desdobramentos inerentes à queda no fornecimento de água para a indústria são: menor produção, corte de investimentos e vagas e até eventuais prejuízos para a qualidade. Na perspectiva empresarial, a escassez hídrica representa sério risco para o negócio a ser considerado e mitigado pelos comitês e departamentos de governança, instituições financiadoras e conselhos de administração. É fundamental, portanto, contratar um seguro para esse risco.
Na Região Metropolitana de São Paulo, o consumo industrial de água é estimado em 10,76 m³/s. Do total, menos de 10% é fornecido pelas concessionárias de água: Sabesp, SAAE de Guarulhos, Semae de Santo André, entre outras, sendo que a maior parte da água provém dos oito sistemas produtores operados pela Sabesp, que, além de operar 33 dos 39 municípios da região, vende água no atacado para ser distribuída em outras 6 cidades.
Os 90% restantes são captados diretamente pelas indústrias em rios. Uma pequena parcela é captada de poços (0,41 m³/s). A captação direta dos mananciais pela indústria depende de uma outorga concedida pelo DAEE – Departamento de Águas e Energia Elétrica. Como já exposto, a legislação estabelece que a outorga poderá ser suspensa parcial ou totalmente, em definitivo ou por prazo determinado, em situações de calamidade ou para atender ao interesse coletivo. Recentemente, o estado do Rio de Janeiro anunciou que passará a rever as outorgas concedidas a grandes indústrias consumidoras.
O mesmo caminho poderá ser seguido pelos demais estados do Sudeste. Uma solução para fazer frente a tal situação passa pela gradual substituição da dependência de mananciais pela água de reúso. A planta da empresa Vallourec-Sumitomo em Jeceaba, Minas Gerais, é um exemplo de sucesso. Aproximadamente, 90% de toda água consumida é gerada a partir dos efluentes produzidos pela própria planta.
Outro bom exemplo é a unidade São Paulo da Pilkington, que, através de EPAR, obtém cerca de 70% do seu consumo de água industrial e, por isso, foi aquinhoada com o prêmio de mérito ambiental da Fiesp de 2007. O segundo modelo consiste em reusar o esgoto doméstico tratado nas plantas das concessionárias de água e fornecer a um conjunto de indústrias por meio de adutoras. O principal projeto dessa natureza no hemisfério sul está na Região Metropolitana de São Paulo.
Trata-se do Aquapolo Ambiental, com capacidade para produzir 1 m³/s a partir do esgoto tratado na ETE ABC da Sabesp. O projeto atende ao Polo Petroquímico do ABC, em Capuava, e pode servir outras indústrias da região, ao longo do trajeto de 17 km da adutora, com capacidade para 1.000 litros/s. Isso ainda segue dificultado, pois o traçado corta municípios não operados pela Sabesp, e é preciso superar problemas de ordem comercial com as concessionárias locais.
Pelo arranjo contratual, o polo petroquímico e suas 14 indústrias, lideradas pela Braskem, tem garantido o fornecimento pelos próximos 38 anos. O projeto, o 4º maior do mundo em reúso, utiliza o estado da arte tecnológico, envolvendo um reator biológico de membrana terciário, que recebe efluente de decantadores secundários da ETE, operando-se ainda uma instalação de osmose inversa, para atender às especificações técnicas.
Outros dois projetos de reúso industrial significativos são: o fornecimento, pela Sabesp, de cerca de 60.000 m³/mês à Coats Corrente, por adutora de 1 km, a partir de ETE Jesus Netto na Mooca e que foi pioneiro no país; 50.000 m³/mês à indústria de papel Santher, a partir da ETE Parque Novo Mundo. Outro projeto está em andamento, para fornecer 35.000 m³/mês à indústria têxtil Santa Constância, através de adutora de 4 km, a partir da ETE Parque Novo Mundo.
É importante ressaltar que tais projetos embutem a possibilidade de, além da segurança hídrica, se ter três vantagens:
1. redução de custos pela tarifa cobrada ser em geral mais baixa. Para a água de reúso de uso geral para lavar ruas e adquirida por prefeituras ou para umectação em terraplenagens, comprada por empreiteiras, o preço é de apenas R$ 1,10/m³. Ou seja, o reúso também é indutor de desenvolvimento e, em especial, no caso do Aquapolo, possibiltou que investimentos futuros na atividade petroquímica pudessem ser mantidos, em detrimento de transferência para outros polos, como o de Camaçari-BA e Triunfo-RS;
2. concentração e foco no core business;
3. propiciar ações de marketing ecológico e institucional pelas empresas clientes. Com a escassez hídrica atual e a perspectiva de seu prolongamento por muitos meses, a aposta na captação superficial ou poços, ainda que barata, se mostra arriscada. Uma eventual revisão das outorgas pelo governo do Estado ou mesmo o colapso das fontes de captação podem inviabilizar a operação de plantas industriais.
O reúso de água é o seguro mais efetivo e sustentável para esse risco. É urgente que as indústrias revejam suas fontes de consumo de água e passem a, voluntariamente, reduzir sua dependência de mananciais superficiais. Essa estratégia não só melhorará a sustentabilidade ambiental, mas garantirá a sustentabilidade econômica e a perenidade do negócio.