Me chame no WhatsApp Agora!

Fabiana Villa Alves

Pesquisadora da Embrapa Gado de Leite

Op-CP-40

Bem-estar animal e o sistema iLPF
Os sistemas agroalimentares, como o setor produtivo em geral, têm sofrido remodelações nos seus modelos vigentes, com particular foco nos impactos gerados ao ambiente. Nesse contexto, temas como responsabilidade ambiental, sustentabilidade, ética alimentar, biodiversidade e bem-estar animal ganham destaque e deixam de ocupar um espaço "filosófico", embasados na ética pessoal, para se tornarem aspectos práticos, quantificáveis e aplicáveis, passíveis de serem valorados.

Todos, em maior ou menor grau, refletem positivamente em toda a cadeia produtiva, no chamado from farm to folk, isto é, do produtor ao consumidor, passando pela indústria. A ideia de bem-estar animal é muito mais antiga que a sua pesquisa como um campo de trabalho científico. Hoje, existem várias concepções do termo, aplicáveis a todos os tipos de animais, dos silvestres aos de cativeiro, passando pelos de companhia e experimentação. O ponto de partida para seu entendimento é o reconhecimento de que os animais são seres sencientes, ou seja, dotados de sensibilidade e capazes de perceber o que lhes passa ao redor.

A Organização Mundial de Saúde Animal define bem-estar animal como a forma como o animal lida com o seu entorno, e, aqui, incluem-se seus sentimentos e comportamento. Assim, pode-se assumir que um animal está em boas condições de bem-estar se estiver saudável, confortável, bem alimentado, seguro, 
apto para expressar seu comportamento inato e livre de dor, medo ou angústia. Isso implica prevenção e tratamento adequados de doenças, manejo e plano de alimentação adequados e, quando for o caso, abate humanitário. Sob essa ótica, falar em bem-estar animal é falar também em segurança alimentar.
 
Em países mais avançados nesse entendimento, o conceito "bem-estar animal" assume conotação sobretudo de "bem público", com intervenções públicas normativas e de subsídios: é parte integrante, há tempos, da Política Agrícola Comum europeia, como requisito mínimo em medidas e políticas públicas para o desenvolvimento rural. Basicamente, podemos relacionar dois principais motes à sua adoção: de um lado, questões morais e religiosas, ligadas ao respeito aos animais; do outro, questões técnico-comerciais, ligadas à produção e à qualidade. Obviamente, dá-se mais ênfase à ótica ética onde já se tenha superado problemas de segurança alimentar, como nos países desenvolvidos.

Naqueles em desenvolvimento, os aspectos sanitários e produtivos se mostram os principais motivos. Pode-se, então, acertadamente, pressupor que, em nível internacional, esse tema gera controvérsias, com apresentação de argumentos válidos e consistentes, porém divergentes, por ambas as partes. Não surpreende, portanto, que o bem-estar animal seja, hoje, uma das temáticas mais discutidas.

 
Para se entender melhor o conceito “bem-estar”, três aspectos básicos devem ser considerados:

a. é uma característica do animal, e não algo que lhe pode ser fornecido pelo homem;
b. é um estado mutável, não estático, e pode variar em uma escala compreendida entre "muito ruim" a "muito bom";
c. pode ser avaliado cientificamente. 


Questões sobre como vivem e são criados os animais de produção são levantadas há mais de cinco décadas. O “Relatório Brambell”, de 1965, por exemplo, foi pioneiro em estabelecer a base para que, em 1979, o Farm Animal Welfare Council estabelecesse as “cinco liberdades”, princípios essenciais para o atendimento de um standard mínimo de qualidade de vida para animais de produção. Com base nelas, os animais devem estar:

1. livres de fome, sede e má nutrição, garantidas pela disponibilidade de água fresca e alimentos em quantidade e qualidade adequadas;
2. livres de dor, lesões e doenças, por meio da prevenção ou correto diagnóstico e tratamento;
3. livres de medo e angústia, evitando-se sofrimentos inúteis durante todo o processo criatório, inclusive durante o abate;
4. livres de desconforto, através da disponibilidade de ambiente apropriado e confortável, com condições ambientais e de alojamento compatíveis com as suas características;
5. livres para poder manifestar o padrão comportamental da espécie, permitido em ambientes com espaço adequado para a livre locomoção e interação com outros indivíduos da mesma espécie.

 
A partir de então, foram possíveis grandes saltos qualitativos no mundo inteiro em relação:

1. aos sistemas de criação, com adequações do espaço mínimo disponível por animal; fornecimento de dietas balanceadas e disponibilidade de sombra em sistemas extensivos;
2. ao transporte (embarque sem estresse e em veículos apropriados, determinação de tempo e distância máximos, sem interrupção, até o abatedouro); e
3. ao abate (sem sofrimento, com atordoamento eficaz).

 
É verdade, porém, que o bem-estar animal apresenta escalas de valores que variam em função das diferentes ópticas éticas, temporais, culturais, socioeconômicas, mas também não se pode negar que é um caminho sem volta. Tome-se como exemplo a exploração e o atendimento de mercados consumidores mais exigentes, interessados na chamada grass-fed beef (carne produzida em pastagens), em que é condição sine qua non tornar tangível (qualidade final do produto) o intangível (bem-estar).
 
Em regiões tropicais, a temperatura do ar e a radiação solar são os fatores ambientais que mais afetam, direta e indiretamente, os bovinos criados em sistemas a pasto, influenciando seu bem-estar animal. Em pastagens no Brasil Central, por exemplo, animais sem disponibilidade de sombra encontram-se sob estresse térmico calórico (isto é, decorrente das altas temperaturas) em graus mediano e severo, de outubro a março. Nesse caso, conforme o nível de interação "intensidade de radiação solar x nível de adaptação ao calor do animal", verifica-se maior ou menor estresse nos animais.

Como estresse e bem-estar animal são conceitos antagônicos, fica claro que práticas que visam à proteção contra a intensa radiação solar são altamente benéficas quando se pretende melhorar o grau de bem-estar animal. 
Animais submetidos ao estresse por calor consomem menos forragem e bebem mais água; têm seu desempenho prejudicado; aumentam a temperatura corporal, frequência respiratória, batimentos cardíacos e taxa de sudação; tornam-se irrequietos ou se prostram (ficam deitados por longos períodos), entre outros sinais.
 
Nos últimos anos, várias tecnologias foram resgatadas como alternativas mais sustentáveis aos sistemas de produção extensivos convencionais. Uma delas, os sistemas de produção multifuncionais (integração-lavoura-pecuária-floresta, ou iLPF), além de possibilitarem a recuperação de pastagens degradadas, com baixa produtividade, proporcionam vários benefícios diretos e indiretos aos animais, com destaque para o fornecimento de sombra e melhoria das condições microclimáticas e ambientais.

Dependendo do tipo de árvore (nativa e exótica) e/ou arranjo utilizado (linha simples, dupla ou tripla), tem-se diminuição de 2°C a 8°C na temperatura ambiente, em relação a pastagens sem árvores. Como resultados diretos do conforto térmico oferecido, melhoram-se os índices produtivos (ganho de peso, produção de leite) e reprodutivos (menor incidência de abortos, aumento nos índices de fertilidade, maior peso ao nascer). 


Somadas, as melhorias aportadas pelos sistemas iLPF à ambiência e ao bem-estar animal, ambos conceitos fortemente correlacionados, cooperam para o seu fortalecimento como ferramenta na otimização do diferencial já existente na bovinocultura brasileira – rebanhos a pasto – e podem auxiliar na sua consolidação como sustentável no cenário mundial. Diante do exposto, resta dizer que o jargão “colocar o boi na sombra” (usado na bolsa de valores, quando o investidor ganha muito dinheiro em uma operação no mercado, ao ponto de não precisar mais trabalhar), passou a ser também sinônimo de produto final diferenciado.