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Marcelo Morgado

Consultor Especial em Núcleo de Estudos Urbanos

Op-CP-32

Água e floresta: um binômio indissociável

Há forte correlação entre florestas e qualidade/quantidade da água disponível para pronto uso, base para vários projetos de PSA existentes. Estimativas apontam que o benefício dos ecossistemas no tocante à qualidade da água é da ordem de US$ 2,3 trilhões/ano.

Busca-se uma correlação mais clara entre a qualidade da água em bacias de drenagem com certa cobertura florestal e o custo de tratamento, notadamente pelo menor consumo de produtos químicos. Embora evidente que, em geral, águas aduzidas com melhor qualidade exigem tratamento mais simples e barato, o tema é bastante complexo. Exploremos alguns tópicos relevantes:

  • O florestamento de bacias hidrográficas efetivamente protege o manancial. A erosão determina, em geral, cerca de 80% dos problemas de qualidade em microbacias.

Entretanto a relação entre o percentual de área com vegetação florestal e o custo do tratamento não é linear – 40% de mata não significa custo duas vezes menor que 20%. Esclareço recorrendo a um exemplo extremo: proteger apenas uma margem de um rio não traz ganho na escala esperada, pois, da outra margem, podem ser carreados contaminantes e sedimentos em grandes quantidades.

Da mesma forma, sob perspectiva geral, a vegetação nas cabeceiras e trechos à montante é mais efetiva que à jusante. Estudos realizados em microbacias revelam tal conexão, mas há resultados aparentemente díspares, pois características de solo e de relevo têm influência significativa no balanço hídrico e na qualidade do eflúvio.

Pontos isolados sem vegetação podem assumir papel muito relevante, assim como uma simples clareira ou bananal clandestino no sub-bosque podem determinar significativa perda de solo mais desagregado.

Estima-se que, em explorações florestais, 90% dos sedimentos tenham origem nas estradas e carreadores. Além disso, o regime de chuvas afeta muito a erosão. Chuvas intensas e curtas são as determinantes para o carreamento de particulados. Infelizmente, elas podem coincidir com períodos de aplicação de fertilizantes e também lavar herbicidas e pesticidas.

Em resumo, recompor/manter a vegetação nativa junto às margens (mata ripária) e adotar boas práticas de conservação de solo (plantio em curvas de nível, barreiras de sedimentos etc.) influenciam mais que o percentual de cobertura, inclusive na absorção de poluentes e de nutrientes como fosfatos, que deflagram a eutrofização.

O que é difícil é estabelecer uma fórmula clara com parâmetros de qualidade dos corpos d’água, permitindo conceber um pagamento justo/objetivo por tais serviços ambientais. Isso decerto não impede um acordo político entre as partes envolvidas, privilegiando-se a recomposição de áreas mais vulneráveis e conduzindo ao aprendizado mútuo;

• As condicionantes da saúde pública não permitem que os processos de tratamento sejam concebidos e ajustados de forma a depender estritamente da água afluente, o que implicaria riscos inaceitáveis. Ou seja, não se pode, a título de economizar produtos químicos, comprometer a confiabilidade no atendimento de limites legais. As ETAs devem ter processos com grande inércia e robustez para compensar flutuações de qualidade da água aduzida;

• Nem sempre é certo que águas cada vez mais limpas resultem em custo de potabilização cada vez menor. No caso de baixa turbidez, com ausência de agentes nucleantes para favorecer a floculação, pode ser necessário mesmo dosar substâncias como a bentonita para desempenhar tal papel. Pode também ser necessário usar processos que consomem mais energia, como a flotação por ar difuso, em que microbolhas de ar induzem à separação de fase, criando empuxo para subir os flocos de sujidade a serem removidos;

• Mananciais a fio d’água, em bacias florestadas têm o inconveniente de alta cor, proveniente de taninos e ácidos húmicos, oriundos da decomposição de serrapilheira.

Muitos usuários se dispõem a beber, com satisfação, tais águas sem tratamento, quando em incursões por parques, mas não aceitam a mesma água em suas torneiras. Isso obriga as concessionárias a adotar processo mais sofisticado para remover cor.

Tais considerações são relevantes quando se discute transferir para o Brasil modelos como os subsídios concedidos por Nova Iorque para a zona de mananciais de Catskill, Delaware e Croton, constituída em 75% por florestas. Tal caso emblemático enseja importantes ensinamentos e de fato foi bem-sucedido nas condições locais, tendo sido alardeado pela mídia. Isso acabou por gerar falsas expectativas ao projetá-lo como solução global.

O projeto envolve diversos mecanismos, incluindo aquisição de áreas mais sensíveis para implantação de UCs de uso integral e benefícios tributários diversos para boas práticas e turismo rural, num programa total de US$ 1 a 1,5 bilhão em 10 anos, dos quais as transferências diretas a proprietários representam apenas US$ 40 milhões.

Assim, não se pode generalizá-lo, pois sequer existe no Brasil a massa de recursos para subsidiar proprietários rurais no sentido de não derrubar as matas de suas terras, quando, na outra ponta, eles têm o retorno do agronegócio.

Por outro lado, florestas temperadas são bem mais aptas a processos de recomposição na medida em que contam com menor biodiversidade e com técnicas de sucessão florestal e manejo para aproveitamento econômico mais conhecidas e de uso corrente.

Caso a remuneração para a floresta de pé não seja atrativa o suficiente, se comparada com a exploração agropecuária, não há como esperar que prevaleça em regiões onde esta é priorizada frente a outros usos da terra.

Há que acrescer, ainda, as razões de ordem cultural, que, pelo Brasil afora, associam mata a “terreno sujo” e tornam proprietários impermeáveis aos argumentos da maior disponibilidade hídrica, abrigo de espécies que combatem pragas, etc.

Cabe destacar que a necessidade de monitorar diligentemente o cumprimento de obrigações assumidas em PSAs para se fazer jus à receita exige custos importantes para órgãos de fiscalização, em detrimento das ações de repressão ao corte clandestino. Estas, se forem levadas a cabo com rigor, alcançam resultados concretos, conforme atesta a experiência recente na Amazônia, com redução do desmatamento.

Portanto não se deve encarar o PSA como uma panaceia capaz de, sozinho, frear a devastação florestal. Ele é mais uma opção no repertório de ações/políticas públicas, no qual a repressão a práticas ilegais continua sendo a via preferencial para a realidade brasileira.

Por outro lado, os mecanismos de mercado podem vir a ser muito eficientes caso se incentive e se torne mais fácil o retorno financeiro pelo manejo sustentável de madeira, frutos, resinas, fármacos e outros bens da biodiversidade. Estancando-se a absurda e acelerada devastação da floresta amazônica, as madeiras-de-lei deverão atingir preços elevados.

O enriquecimento e o plantio consorciado com essências nativas e exóticas para posterior abate por manejo podem estimular a recomposição florestal. Isso, porém, implica superar os entraves burocráticos no licenciamento e monitoramento dos projetos, que encarecem e dificultam sua viabilização.

Para o bioma mata atlântica, é imperativo ampliar o percentual mínimo preservado para 15%, conforme preconizado pela ONU, visando assegurar sua sobrevivência a longo prazo, sem depleção genética. Por isso é essencial investir na recomposição e na regeneração natural assistida, mais do que simplesmente manter os remanescentes isolados.

Como estes são esparsos, incentivar projetos para conexão de fragmentos via corredores ecológicos pode induzir desenvolvimento econômico, já que se trata de uma atividade intensiva em mão de obra.

Além disso, gera mais empregos que os associados à mera manutenção do status quo da cobertura vegetal, via PSA, que requer contratar vigilantes e mão de obra braçal para manter cercas e aceiros. Outra crítica cabível ao PSA é de ordem teórica, pois tem por base a limitada visão neoclássica da economia ambiental de incorporar externalidades, que está sendo superada pela mais abrangente economia ecológica.

A conservação das florestas é, enfim, parte fundamental da estratégia para assegurar o abastecimento público de água a longo prazo e a manutenção da qualidade dos mananciais. Para tanto, se requerem ações locais, sem perder de vista a dimensão global, em que é central o papel das florestas na regulação do clima e na mitigação da maior ameaça que a humanidade já enfrentou: o aquecimento global.