Promotora Pública do Gaema - Piracicaba
Op-CP-39
O rompimento da segurança hídrica existente no estado de São Paulo, mais especificamente na Região Metropolitana de São Paulo e nas Bacias dos Rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí (Bacias PCJ), não foi por acaso. Trata-se do resultado inevitável de décadas de decisões e de estratégias concebidas no bojo de políticas públicas despidas da real prioridade de preservação e de recuperar os recursos hídricos e do conceito básico de sustentabilidade ambiental.
Os usos das águas se multiplicaram. Praticamente, não se concebe quaisquer atividades sem o uso e consumo desse recurso natural, imprescindível para o abastecimento humano, para a indústria, para a agricultura, para a geração de energia, para a navegação e para tantas outras atividades. E esses múltiplos usos e funções se sobrepõem, muitas vezes, à necessária lucidez de que esse recurso natural é finito, limitado, imprescindível à sobrevivência humana e de inúmeras espécies da vida aquática.
A atual situação do Sistema Cantareira, um dos maiores sistemas produtores de água do mundo, do qual dependem quase catorze milhões de pessoas, é exemplo paradigmático a ser analisado. A superficialidade do discurso sobre imprevisibilidade climática, reiteradamente repetido como justificativa para a inimaginável situação de vulnerabilidade alcançada, não pode prometer um debate sério a respeito das reais razões que levaram a Região Metropolitana de São Paulo e as Bacias dos Rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí ao iminente risco de colapso hídrico, até para que tantos sacrifícios e danos não tenham sido em vão.
E esse risco ainda existe. A crise hídrica ora em curso reforçou a necessidade de enfrentamento de problemas históricos, que remontam mais de quarenta anos, atinentes aos próprios critérios, condições e impactos decorrentes da transposição das águas das Bacias dos Rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí em 31 m3/s para abastecimento da Região Metropolitana de São Paulo. Essas questões passaram a assumir contornos mais nítidos neste momento crítico, à medida que as regiões envolvidas apresentam intensa concentração populacional, parques industriais de importância nacional e outras características que evidenciam que os impactos podem ir muito além de seus limites territoriais.
Previbilidade da crise versus previsibiliade climática: Apesar de o Brasil contar com cerca de 12% da água doce do planeta, a Região Metropolitana de São Paulo encontra-se em situação equivalente à das regiões semiáridas do País, com disponibilidade de apenas 201 m3 por habitante/ano. A Organização das Nações Unidas considera como crítica a disponibilidade hídrica inferior a 1.500 m3 por habitante/ano. O que dizer de uma região que está com apenas 13,4% desse nível crítico?
A baixa disponibilidade hídrica também é verificada na Bacia do Piracicaba, que conta com apenas 408 m3 por habitante/ano (27,2% da disponibilidade crítica). Assim, se o fenômeno climático ora enfrentado pode ser considerado inesperado e imprevisível em suas proporções, o mesmo não se pode dizer em relação ao risco de desabastecimento grave, plenamente previsível diante da inaceitável incompatibilidade entre a disponibilidade hídrica e as demandas existentes, fruto de um crescimento desordenado e insustentável.
Vale lembrar que, pelo ato de outorga de 2004 (Portaria DAEE no 1.213/2004), foi imposta à Sabesp como uma das condicionantes a obrigação de reduzir a dependência do Sistema Cantareira, o que não foi cumprido durante todo o período de vigência. O Plano Diretor de Aproveitamento de Recursos Hídricos para a Macrometrópole Paulista, concluído em 2013 e conduzido pela Secretaria de Recursos Hídricos (DAEE), apresentou alguns “arranjos” como soluções para expansão da oferta hídrica na Macrometrópole, que não detêm as vazões hídricas necessárias à sua sustentabilidade urbana e econômica.
O Sistema de Produção São Lourenço e outras obras previstas desde a década passada, no entanto, não foram realizados, sendo retomados somente recentemente. Torna-se questionável, dessa forma, depois de tantos anos, a utilização dos argumentos de urgência para eventual dispensa de formalidades legais, tais como as licitações e o licenciamento ambiental. Improvisos e atropelos não se coadunam com o gerenciamento adequado de recursos hídricos, que demanda ações e políticas públicas permanentes que, em regra, se concretizam no médio e longo prazo.
Outras razões para o agravamento da crise: O não reconhecimento de gravidade da crise hídrica e do risco de colapso de abastecimento, com a sua dimensão e complexidade, tem se revelado um grande óbice à discussão das ações e estratégias com o Poder Público. Enquanto isso, os níveis dos reservatórios do Sistema Cantareira “despencaram”, sem que ações compatíveis fossem adotadas. Desde outubro de 2013, todavia, já era amplamente admitido por todas as instâncias governamentais o evento climático extremo ora enfrentado.
A superexploração do Sistema Cantareira, mesmo diante da constatação da redução das vazões de afluência e dos níveis dos reservatórios foi notória, merecendo destaque o período de outubro de 2013 a março de 2014, que fez com que o volume do sistema equivalente caísse de 36,67% em 31/10/2013 para 13,51% em 31/03/2014. O resultado em apenas um ano da gestão de altíssimo risco foi o esgotamento do volume útil original do Sistema Cantareira, assim como do Volume Morto I e de boa parte do Volume Morto II. Certamente, ainda será necessário um longo período até a recuperação dos níveis normais dos reservatórios.
O adiamento de decisões técnicas e a não redução das vazões de retirada (das captações) de forma proporcional e compatível com a gravidade da crise foi uma demonstração clara de que os órgãos gestores subestimaram a severidade da estiagem. Depois de inúmeras tentativas de reversão desse quadro e de um silêncio, no auge da crise hídrica, por mais de 90 dias pelos órgãos gestores (ANA e DAEE), sem a necessária redução das captações pela Sabesp do Sistema Cantareira, o Ministério Público do Estado de São Paulo e o Ministério Público Federal, pelos diversos Promotores de Justiça e Procuradores da República que atuam nas Bacias Hidrográficas envolvidas, acabaram ajuizando ações civis públicas visando evitar o esgotamento do Sistema Cantareira e o deplecionamento em cadeia dos demais sistemas produtores da Região Metropolitana de São Paulo, a fim de prevenir desabastecimento generalizado e maiores impactos ambientais, econômicos, sociais, à saúde pública e aos consumidores.
Também foram pedidas outras medidas para a recuperação dos reservatórios e da segurança hídrica e para a transparência em relação ao planejamento e às estratégias. Até o momento, apesar da judicialização e da intensa pressão da sociedade civil, por meio dos movimentos sociais e outras instituições representativas, ainda não há clareza no tocante ao plano operacional a ser adotado na estiagem de 2015 e nos anos subsequentes, e as reiteradas mudanças de postura diante da ocorrência ou não de chuvas demonstram a falta de rumos claros no planejamento. Também não há um plano de contingência adequado e abrangente que observe os usos prioritários e que não imponha a divisão desigual dos prejuízos.
A necessidade de uma política ambiental integral: A crescente e descontrolada exploração das águas subterrâneas, como recurso ilimitado para suprir a insuficiência da disponibilidade hídrica das águas superficiais, tem sido motivo especial de preocupação, sem que medidas compatíveis estejam sendo adotadas para coibir o uso indiscriminado. Longe de resolver o problema, podem acarretar riscos de comprometimento e de contaminação dessas reservas.
Outra contradição em termos de política ambiental, em plena crise hídrica, foi a aprovação, no início de 2015, da Lei Estadual Paulista nº 15.684, de janeiro de 2015, que veio impor retrocessos ambientais ainda mais significativos à proteção dos recursos florestais, inclusive no entorno dos reservatórios que, a partir de então, poderão ficar ainda mais desprotegidos, conflitando com a Constituição Federal de 1988 e com as Leis de Políticas Nacionais de Meio Ambiente, de Recursos Hídricos e de Mudanças Climáticas.
Diante da tendência sazonal de agravamento de eventos extremos, alertada pelo CPTEC/INPE, Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) e por outros institutos, emerge, portanto, a necessidade de avanços significativos no gerenciamento dos recursos hídricos, que somente surtirão efeito se ocorrerem conjuntamente com ações e estratégias para uma política integral ambiental, que contemplem o controle da expansão urbana, a ampliação de programas para a recuperação florestal das áreas de mananciais, o controle da poluição para melhoria da qualidade da água e outros aspectos.
A gestão compartilhada, descentralizada, democrática e participativa dos recursos hídricos envolve também mudanças estruturais nos diversos níveis de governo (federal, estadual e municipal), ao lado da ampliação dos mecanismos de informação, participação e de controle social, ou seja, de governança ambiental. Esses são desafios que se estenderão para muito além da superação desta crise hídrica e que exigirão transparência e articulação com a sociedade por parte dos órgãos públicos competentes.