Me chame no WhatsApp Agora!

Celso Vainer Manzatto

Chefe-geral da Embrapa Meio Ambiente

Op-CP-39

Agricultura e as lições da crise hídrica

A atual crise hídrica tem sido atribuída à falta de planejamento e de investimentos na captação de água e de geração de energia, às condições climáticas adversas históricas no Sudeste e Nordeste do País e à ocorrência de eventos extremos decorrentes das mudanças climáticas (secas, chuvas intensas e inundações). Em meio à crise hídrica e aos esforços para a redução do consumo, a agricultura também entrou no debate.

De um lado, pelo uso das terras e a irrigação como responsável pelo aumento da erosão e pela utilização, na irrigação, de cerca de 70% da água captada no País e, por outro, sofrendo os impactos dos mesmos eventos climáticos extremos, com reflexos na oferta e no preço dos alimentos para a população. Quanto à irrigação, considera-se que parte dos sistemas trabalham abaixo de sua eficiência. A combinação de melhor gestão da irrigação, o investimento no conhecimento local e em novas tecnologias e o desenvolvimento da capacitação, podem aumentar a eficiência do uso da água e a ampliação da oferta de alimento.

Quanto ao uso das terras, as imagens dos reservatórios hídricos vazios não retratam adequadamente a relação que os recursos hídricos guardam com o processo de uso e ocupação das terras nas mais importantes bacias hidrográficas do País. Relacionar a crise apenas à baixa vazão dos rios e ao volume de água armazenada nos reservatórios como decorrência de baixos índices de precipitação ressalta a necessidade de uma gestão integrada mais eficaz dos recursos hídricos, amplamente discutida na crise do apagão de 2000, porém uma gestão que considere, também, a base de  conhecimentos e informações sobre os solos tropicais e subtropicais, o planejamento de uso das terras e a gestão ambiental territorial das bacias.

Ou seja, na base da crise do armazenamento hídrico, está a dependência de nossos aquíferos da capacidade de infiltração e armazenamento de água das chuvas nos solos, influenciada pelas suas características físicas e químicas, seu estado de conservação e do uso e cobertura vegetal das terras, em especial nas zonas de recarga. Ou seja, a chuva atua no processo de degradação, em função do impacto de suas gotas sobre o solo, que caem com velocidade e energia variáveis, e de suas propriedades físicas e químicas.

Associando esses fatores ao tipo de cobertura vegetal bem como ao seu uso, manejo e práticas de conservação, a erosão pode se tornar mais ativa, reduzindo a espessura do solo, promovendo sua compactação/adensamento e diminuindo a capacidade de infiltração, de retenção e de redistribuição da água no corpo do solo. Bacias com pouca cobertura vegetal podem intensificar os processos erosivos do solo, favorecendo o assoreamento e reduzindo a recarga do lençol freático, com reflexos na falta de água nas nascentes durante os períodos de seca e consequente diminuição da vazão dos mananciais.

Ressalta-se, nesse sentido, a importância e o papel das florestas – plantadas ou nativas – na paisagem, como defesa natural do terreno, ao promover a dispersão da água e protegê-lo do impacto direto das chuvas. Portanto, o planejamento inadequado do uso das terras – urbano e rural –, o uso e o manejo inadequado dos solos, de áreas de recarga de aquíferos e o uso de áreas impróprias (solos de baixa aptidão agrícola), embora pouco lembrados, são certamente importantes vetores que intensificam os efeitos decorrentes de períodos de baixos índices de precipitação, como os observados atualmente em algumas regiões.

Além de reduzir as taxas de infiltração em áreas de recarga de aquíferos, tais práticas favorecem o carreamento de bilhões de toneladas de terra para rios e lagos, resultando no assoreamento de  reservatórios de água para abastecimento humano, agricultura e geração de energia hidrelétrica, além de agravar os problemas causados pelas enchentes, especialmente no período de chuvas intensas de verão, cada vez mais frequentes.

O relatório Solaw da FAO 2011 chama a atenção sobre a degradação e a escassez de solos e água que impõem um novo desafio à tarefa de alimentar e prover abastecimento hídrico a uma população mundial da ordem de 9 bilhões de pessoas em 2050. O estudo aponta que cerca de 25% dos recursos dos solos do planeta estão degradados,  8%  estão moderadamente degradados, 36%  estáveis ou levemente degradados e 10% "em recuperação".

Em relação aos recursos hídricos, destaque para a condição de risco de grandes massas de água interiores pela combinação de fluxos reduzidos e uma maior sobrecarga de nutrientes – acumulação excessiva de nitrogênio e fósforo de origem agrícola e/ou urbana. A FAO ressalta ainda que as mudanças climáticas alterarão padrões de temperatura, precipitação e regime hídrico, resultando numa competição universal por terra e água para uso urbano e industrial, bem como no setor agrícola, entre pecuária, culturas básicas, culturas não alimentares (florestas e outras) e produção de biocombustíveis.

O reflexo dessa degradação e competição pelo uso das terras pode representar um ciclo de pobreza que deve e pode ser evitado, promovendo a sua imediata reversão para um ciclo de prosperidade, como, por exemplo, através do crescimento econômico sustentável da agropecuária. Felizmente, há alternativas sustentáveis de manejo agrícola dos solos tropicais, que reduzem ao mínimo a degradação das terras.

A exemplo disso, o uso de sistemas conservacionistas baseados no Sistema Plantio Direto (SPD), ao aliar  maior captação de água das chuvas a uma sensível redução da evaporação do solo, permite que tenhamos uma quantidade expressiva de milímetros disponíveis, que se traduzem no aumento da produção agrícola, na diminuição das perdas de solo e água. Associado a outras práticas conservacionistas, o SPD é considerado um sistema que permite a recuperação efetiva e duradoura de áreas degradadas por erosões crônicas.

Outra alternativa que tem merecido atenção especial é a adoção de sistemas de produção integrados, também denominados de Integração Lavoura Pecuária Floresta (ILPF). Além de preconizar o SPD, são concebidos para promover sinergias entre as atividades agrícolas, pecuárias e florestais desenvolvidas em uma mesma área, aumentando a produção e a produtividade na agropecuária com conservação ambiental. Tais sistemas têm aberto novas perspectivas para a pecuária de corte e leite brasileira, aliando ganhos de produtividade, recuperação de pastagens e solos degradados e conservação ambiental.

Não é por acaso que tais práticas fazem parte de um conjunto de medidas previstas no Plano ABC (Agricultura de Baixa Emissão de Carbono) que, além de propiciarem a recuperação do solo e a produção de água, resultam, ainda, na redução das emissões de gases de efeito estufa na agricultura. Entretanto é necessário avançar ainda mais. Nesse sentido, uma questão subjacente e não menos importante, diz respeito à adequação ambiental das propriedades rurais.

Desde 2012, o Brasil conta com o novo Código Florestal (Lei nº 12.651), que define, entre outros pontos, os critérios para a manutenção e restauração de Áreas de Preservação Permanente (nascentes, margem de cursos d’água, encostas, topos de morro, entre outras) e de Reserva Legal. Os benefícios ambientais de tais áreas nos processos de recarga de aquíferos e na manutenção da integridade dos recursos hídricos são bem reconhecidos.

Com a nova lei, o Brasil tem uma grande oportunidade de superar algumas dificuldades do passado. A primeira delas é de conhecer a situação de todas as propriedades rurais do País, incluindo o montante de seus passivos ambientais – o que será possível após a finalização do processo de cadastramento das propriedades no CAR (Cadastro Ambiental Rural) – e, posteriormente, o acompanhamento dos Programas de Regularização Ambiental estaduais, ambos previstos no Código Florestal.

Em regiões com escassez hídrica, por exemplo, essas ações podem representar um novo impulso à implantação de programas de apoio e incentivo à preservação e à recuperação do meio ambiente através de incentivos, como o pagamento de serviços ambientais e a ações que favoreçam a conservação ambiental (solo, água e biodiversidade).

Assim, a reversão do processo de degradação das terras e a consequente garantia de que as águas das chuvas não mais serão perdidas rapidamente através de escorrimento superficial dependem de uma difusão mais eficiente de tecnologias que visem ao uso sustentável das terras, de incentivos governamentais que assegurem a sua adoção pelos produtores e de planejamento participativo do uso das terras nas bacias hidrográficas.

A inserção dos produtores e proprietários rurais no processo decisório é fundamental para o sucesso de qualquer iniciativa que envolva alteração nos modelos de utilização das terras. Somente com o engajamento de toda a sociedade, urbana e rural, conseguiremos vencer o fantasma do racionamento e sair da crise com um modelo de gestão do uso da terra que leve à recuperação da quantidade e da qualidade de nossos recursos hídricos. E não faltam exemplos no Brasil – no passado recente, o estado do Paraná foi o berço do SPD e exemplo mundial de conservação de solo e água na agricultura tropical.