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João Paulo Ribeiro Capobianco

Diretor do Instituto Democracia e Sustentabilidade

Op-CP-25

Como transformar a lei florestal na lei de Gérson

Segundo a Wikipédia, “na cultura brasileira, a Lei de Gérson é um princípio em que determinada pessoa age de forma a obter vantagem em tudo que faz, no sentido negativo de se aproveitar de todas as situações em benefício próprio, sem se importar com questões éticas ou morais... e as regras de convívio, para a obtenção de vantagens pessoais”.

Lendo essa definição, não pude deixar de estabelecer uma relação direta com o que prevê o projeto de lei de reforma do Código Florestal aprovado na Câmara e que se encontra em discussão no Senado, sob o número PLC 30/21. Isso porque a proposta em tramitação simplesmente elimina obrigações estabelecidas por lei desde 1934, reforçadas em 1965 e reafirmadas em 1988, 1989, 1991 e 1996.

Com exceção da última, que foi estabelecida por Medida Provisória (quando o desmatamento na Amazônia atingiu seu recorde histórico), todas as demais foram leis aprovadas pelo Congresso Nacional. A maioria delas, inclusive, a partir de propostas do próprio setor agropecuário, baseado em dados científicos e encaminhados pelos ministros da agricultura de cada época.

O argumento muito utilizado de que não foi o desrespeito às leis, mas as mudanças das regras que levaram os produtores a ficar em situação irregular, pode ser muito boa para tentar tornar a reforma palatável para a sociedade, mas não resiste a nenhuma análise séria sobre o que de fato ocorreu nos últimos setenta anos no Brasil.

Os dados históricos mostram que foi a tentativa de conter o desmatamento avassalador que ocorreu e continua ocorrendo no País que levou o poder público a modificar a legislação florestal ao longo do tempo. As alterações foram sempre no sentido de tornar mais claros seus dispositivos e aumentar a sua eficácia.

Ignorando esses fatos, o projeto de lei, na forma como aprovado na Câmara, traz os seguintes benefícios para quem praticou o desmatamento ilegal:

a. obrigatoriedade de recuperar apenas metade das florestas ao longo dos rios (art. 35) de até dez metros e sem prazo para fazê-lo;
b. possibilidade de manter e continuar a explorar pastagens em topo de morro e encostas (art. 10 e 12); e
c. não precisará recuperar a Reserva Legal desmatada se a propriedade tiver até quatro módulos fiscais (art. 13, §7o), mesmo que a recomposição não leve à redução de sua capacidade produtiva.

Além disso, o projeto define que os proprietários em situação irregular devem elaborar um Plano de Recuperação Ambiental (PRA) para se adequarem às novas exigências legais.

Entretanto, não prevê a definição de requisitos mínimos em nível nacional para que os estados orientem a elaboração desses planos. Tampouco define prazos para a aprovação dos PRAs e punições para quem apresentou o Plano, teve suas multas e sansões suspensas, mas não o está cumprindo.  

Ou seja, quem ignorou a legislação e desmatou de forma ilegal receberá como “punição” a possibilidade de recuperar menos do que deveria no critério anterior, ficando com mais área para produção do que seu vizinho que cumpriu a lei. Poderá continuar utilizando economicamente muitas dessas áreas, o que seu vizinho também não poderá fazer.

Se livrará das multas e outras punições com a apresentação de um PRA sem prazo e sem punições, caso decida não o implementar. Para fechar com chave de ouro, além de permitir inúmeras formas de consolidar o uso de áreas ilegalmente desmatadas e de suspender as punições já aplicadas, estimula novos desmatamentos. Isso porque permite compensações para desmatamentos de área de Reserva Legal, mesmo para os casos de derrubadas ilegais a partir da aprovação da nova lei.

Como se vê, o debate em torno da reforma do Código Florestal está longe de ser apenas uma questão ambiental. Mais longe ainda de ser somente um embate entre ambientalistas e ruralistas, como de forma reducionista estão sendo chamados os dois segmentos que, em posições antagônicas, lideram as discussões. O que está sendo discutido está relacionado a valores, justiça e ética.

Está profundamente ligado a questões da mais alta relevância civilizatória: como conhecemos e reconhecemos a nossa história e, principalmente, como nos vemos e planejamos o nosso futuro como brasileiros no início de um novo século. Diz respeito, ainda, a quão seriamente encaramos a nossa democracia e o estado de direito onde as leis, que regram as relações humanas em proteção ao indivíduo e à coletividade, deveriam ser respeitadas.